Desafios e oportunidades no mercado de trabalho inclusivo na indústria de SC 4m3l3g

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Pessoas com deficiência encontram em Santa Catarina o 2º Estado com maior renda média do país. Três em cada dez indivíduos com algum tipo de “deficiência” estão inseridas no mercado de trabalho em SC

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Sobre a mesa, cerca de 5.000 minúsculos componentes que servirão para compor placas de sistemas usados em câmeras de vigilância. Com uma habilidade e uma concentração exemplares, Eugênio Back, 44 anos, repete os encaixes das pequenas peças em ritmo industrial.

Eugênio Back trabalha há 20 anos na empresa – Foto: Leo Munhoz/NDEugênio Back trabalha há 20 anos na empresa – Foto: Leo Munhoz/ND

Com deficiência visual desde os nove meses de idade e com 20 anos de “chão de fábrica” na Intelbras, em São José, ele faz parte do universo de quase 135 mil catarinenses com deficiência inseridos no setor produtivo de Santa Catarina.

Dados analisados pelo Observatório da Fiesc (Federação das Indústrias de Santa Catarina) com base na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022) revelam que três em cada dez pessoas com algum tipo de deficiência estão inseridas no mercado de trabalho em Santa Catarina.

O Estado possui a menor taxa de informalidade e o segundo maior rendimento médio para pessoas com deficiência no país. Os números apontaram que em Santa Catarina há 499 mil pessoas com algum tipo de deficiência – cerca de 6,9% da população com dois ou mais anos de idade. Deste número, 221 mil são homens e 278 mil mulheres, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Levantamento do Observatório da Fiesc aponta que 26% das pessoas com deficiência com 25 anos ou mais concluíram o ensino básico em Santa Catarina. Essa proporção é de 56,9% entre as pessoas sem deficiência. Ou seja, seis a cada dez pessoas que têm algum tipo de deficiência não conseguiram concluir o ensino básico.

O Estado possui a segunda menor taxa de analfabetismo para esse público e nessa faixa etária, de 9,9%, ficando atrás apenas do Distrito Federal, que alcançou 8,8%, enquanto a média nacional é de 20%.

Apesar dos bons números em Santa Catarina, um dos grandes desafios atualmente é que pessoas com deficiência encontrem um trabalho por meio de empregabilidade ativa, a partir de uma preparação exclusiva e diferenciada.

Além disso, as empresas precisam observar os profissionais com deficiência como trabalhadores normais, fugindo daquele retrato capacitista pintado pelas histórias de superação.

Qualificação ainda é barreira a ser enfrentada 53301o

Para Katya Hemelrijk, CEO da Consultoria Talento Incluir, pioneira no país com soluções focadas nos pilares de D&I (diversidade e inclusão), que integram conscientização, contratação, carreira e ibilidade e consultoria estratégica de marketing e comunicação para pessoas com deficiência, existem muitos movimentos hoje de empresas que têm a capacitação como um ponto de diferencial.

Katya não esconde que ainda existe resistência corporativa na contratação de pessoas com deficiência – Foto: Katya Helmerijk/Divulgação/NDKatya não esconde que ainda existe resistência corporativa na contratação de pessoas com deficiência – Foto: Katya Helmerijk/Divulgação/ND

Ela lembra que em um ado bem recente as empresas capacitavam pessoas com deficiência para depois contratar as que mais se destacavam, sabendo que isso é uma lacuna da sociedade. Segundo Katya, 40% das escolas de ensino médio, superior ou de especializações não têm nenhum tipo de ibilidade.

“De fato, uma pessoa com deficiência tem uma dificuldade gigantesca de estudar. Só que baseado nisso existe uma verdade absoluta de que pessoas com deficiência não têm qualificação, que também não é verdade”, disse.

“Há necessidade de elas se qualificarem também. Temos um percentual muito baixo de pessoas com o ensino médio, por exemplo. Então há necessidade também de as pessoas buscarem essas qualificações para poder atender às demandas”, reforça Sandro Volpato Faria, gerente de Responsabilidade Social da Fiesc.

O grande desafio atual é a promoção da qualificação para que a pessoa com deficiência consiga estudar e que possa crescer em suas carreiras.

Vitinho durante parte de sua atividade laboral - Leo Munhoz/ND
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Vitinho durante parte de sua atividade laboral - Leo Munhoz/ND
O  se orgulha da ascensão de sua carreira profissional - Leo Munhoz/ND
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O se orgulha da ascensão de sua carreira profissional - Leo Munhoz/ND
Gean Reis, 28 anos, ocupa o cargo de supervisor na Intelbras - Leo Munhoz/ND
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Gean Reis, 28 anos, ocupa o cargo de supervisor na Intelbras - Leo Munhoz/ND
Eugênio Back conversa com os colegas de produção - Leo Munhoz/ND
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Eugênio Back conversa com os colegas de produção - Leo Munhoz/ND
No processo de montagem das peças - Leo Munhoz/ND
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No processo de montagem das peças - Leo Munhoz/ND
Habilidade de Eugênio Back na montagem de peças - Leo Munhoz/ND
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Habilidade de Eugênio Back na montagem de peças - Leo Munhoz/ND

Na indústria, por exemplo, cursos técnicos promovidos pelo Senai (Serviço Nacional da Indústria) são vistos pela especialista como importantes para que as pessoas possam mostrar o seu potencial com a tranquilidade de poderem dizer que sabem fazer seu trabalho.

Segundo Sandro, para o que as indústrias estão oferecendo hoje em dia se vê a necessidade de busca por qualificação. Ele cita, como exemplo, mais de 500 vagas disponíveis no Portal da Inclusão da Fiesc que, muitas vezes, não são preenchidas pela falta de qualificação do candidato.

Transformação cultural envolve familiares m6a3w

A resistência familiar é outro desafio para inserção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, principalmente quando se trata de pessoas com deficiências intelectuais, que acabam sendo mais acolhidas e protegidas pelos familiares.

Existe também uma restrição que impacta muito nesse processo que é o benefício concedido pelo governo. Muitas pessoas com deficiência ou recebem BPC (Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência) – um salário mínimo por mês para a pessoa com deficiência e que comprove ser baixa renda–, ou são aposentadas por invalidez por sua própria família.

“É uma renda garantida. Quando as pessoas vão trabalhar, elas precisam abrir mão dessa renda e abrir mão de ser aposentado por invalidez, o que para família representa muitas vezes um risco. Muitas vezes é uma renda e garante o sustento familiar, então a família não estimula que a pessoa vá para ganhar praticamente a mesma coisa”, conta Katya Hemelrijk, CEO da Consultoria Talento Incluir.

Terminologias atualizadas – Foto: ARTE/NDTerminologias atualizadas – Foto: ARTE/ND

Segundo ela, devido a essas restrições, há muita dificuldade de colocar pessoas com deficiência nas chamadas vagas de entrada, em que ganham um salário mínimo ou menos e que têm uma jornada de trabalho longa. “E aí, na hora que ela coloca na balança, não vale a pena. Então é um processo de convencimento mesmo e de transformação de cultura”, completou.

Katya não esconde que ainda existe resistência corporativa na contratação de pessoas com deficiência. “Nosso papel é influenciar mesmo. É uma transformação cultural. A gente precisa fazer muitas pessoas deixarem de ter medo de conviver com pessoas com deficiência, acreditem no potencial delas. Enquanto isso não acontece a gente não consegue dar o próximo o”, conclui.

Para a gestora, a inclusão é uma via de mão dupla. Ou seja, as pessoas com deficiência devem conhecer um pouco do universo do mundo corporativo e as pessoas sem deficiência têm que aparecer e mergulhar na realidade dos PcD para que os dois lados de vulnerabilidade apareçam.

“Nunca pensaram nas limitações, e sim nas oportunidades” 2m2p3

O catarinense Gean Reis, 28 anos, é formado em istração empresarial pela Udesc Esag e especialização em liderança e gestão. Ele nasceu com a síndrome de Larsen, que geralmente se manifesta nos dedos da mão ou do pé, mas em Gean acometeu o joelho, o quadril e acabou afetando seu crescimento. Desde que nasceu, já ou por dez cirurgias.

Ele coordena cerca de 50 mil pessoas em soluções de vendas – Foto: Leo Munhoz/NDEle coordena cerca de 50 mil pessoas em soluções de vendas – Foto: Leo Munhoz/ND

“Por mais que eu tenha sentido ter várias limitações, nunca foi a forma como eu encarei a vida, muito em razão da criação que os meus pais me proporcionaram. Nunca pensaram nas limitações, e sim nas oportunidades. Eles foram os meus principais ídolos nessa jornada”, contou Reis.

A jornada dele começou em 2017 na Intelbras, após um período de seis anos trabalhando na empresa da família, especializada em móveis sob medida. Como todo pai de filho único que tem um negócio, o pai dele via o filho tocando a empresa, mas isso acabou não acontecendo com Gean. “Não era o meu sonho”.

Com o diploma embaixo do braço e um segundo idioma, Reis entrou na Intelbras como assistente de treinamento, posição que ficou por dois anos e sete meses. Então surgiu a oportunidade para assumir a função de analista de conteúdo voltado para soluções de vendas, onde ficou por um ano e sete meses.

A ascensão dele na empresa foi fulminante, virou líder de treinamento e, há dois anos, ocupa o cargo de supervisor onde leva seus ensinamentos para mais de 50 mil pessoas.

Ele diz ter sofrido preconceito, mas a sua formação familiar lhe permitiu “não trabalhar sobre a dor e sim sobre as oportunidades”. “Lógico que ninguém aqui vai dizer que não sofreu a risada na infância. Isso acontece, só que aí tem o lado da preparação e do entorno te permitirem lidar com isso de diferentes maneiras… Eu escolhi lutar e aproveitar as oportunidades que me apresentaram”.

O se orgulha da ascensão de sua carreira profissional, no entanto alerta para o pequeno o das pessoas com deficiência em cargos de chefia. “Quantos PcDs estão na minha posição? Meio por cento. Meio por cento dos PcDs são líderes no Brasil hoje? É um tema complexo. Tem que preparar essa turma, tem que mostrar que é possível. Tem que dar bons exemplos”.

Segundo Gean, a indústria e as instituições de ensino têm um papel importante de mostrar que é possível.

“Trabalho me trouxe dignidade e felicidade” 264233

O sorriso do Eugênio chega antes dele. E parece que nunca vai embora. Pelos setores da fábrica, ele é visto com um dos funcionários mais divertidos. A ida e o retorno ao trabalho vêm arrancando gargalhadas dos colegas dentro do ônibus fornecido pela empresa. “Sou assim. Agradeço muito pela vida, o trabalho me trouxe dignidade e felicidade”, diz ele, que já pensa na aposentadoria.

Eugênio Back conversa com os colegas de produção – Foto: Leo Munhoz/NDEugênio Back conversa com os colegas de produção – Foto: Leo Munhoz/ND

Com quase 20 anos na Intelbras, casado e pai de dois filhos, o mais velho (de 16 anos) também com deficiência visual, Eugênio enxerga apenas vultos desde os noves meses de idade. Uma febre alta que teria sido causada por início de uma meningite teria resultado na atrofia do nervo ótico.

A Intelbras foi a primeira e única empresa que trabalhou. Chegou por lá através de encaminhamento da Acic (Associação Catarinense para Integração do Cego). O início foi de adaptação tanto dele quanto da empresa.

“Realmente a questão da locomoção foi a maior dificuldade. Porque era lá na matriz, então naquela época, como eu quase nunca tinha saído de casa, então tinha um pouco isso”, recorda Eugênio.

Um profissional da Acic foi deslocado para fazer todo o acompanhamento e ensiná-lo o trajeto do refeitório até a área de trabalho e vice-versa. Foi preciso a empresa se adaptar à chegada de Eugênio. Hoje, na unidade em que ele trabalha, trilhas com pisos táteis foram instaladas da entrada da fábrica até a área de produção.

Eugênio recorda também de outra mudança que a empresa fez para integrá-lo à produção. “Trabalhei primeiro com embalagem de placas e depois eu fiquei um tempo no teste. Adaptaram um equipamento para mim, onde tinha um som para ‘reprovado’ e um outro tipo de som para ‘aprovado’. Foi um dos exemplos mais perceptíveis para a empresa que me inseri na produção”, lembrou.

Ele recorda que a principal dificuldade na infância foi estudar. Back foi alfabetizado em braille apenas aos 12 anos. “Não tinha material adaptado. A única instituição que tinha, que era a Acic, só cuidava de pessoas com deficiências visuais já adolescentes, adultos. E enquanto criança, eu não tive apoio nenhum”.

Para ele, o estudo abre portas no mercado de trabalho para as pessoas com deficiência. Diz que as famílias devem buscar entender os anseios e investir nos PCDs. “Não deixe a pessoa se atrofiar em casa”, alerta.

Vitor Tessari é operador de máquina de tampografia injetora na unidade da Intelbras – Foto: Leo Munhoz/NDVitor Tessari é operador de máquina de tampografia injetora na unidade da Intelbras – Foto: Leo Munhoz/ND

Vitinho, como é carinhosamente chamado pelos colegas, é operador de máquina de tampografia injetora na unidade da Intelbras, em São José. Dos 40 anos de vida, 20 são de empresa. “Minha mãe pediu ao dono uma vaga para eu vir trabalhar aqui, e estou aqui um tempão já”, contou ele.

Portal da Inclusão 366i1n

Lançado em 2017 e atualizado no ano ado, o Portal da Inclusão é uma plataforma gratuita que visa criar oportunidades e desenvolvimento para pessoas com deficiência e/ou reabilitadas. Na ferramenta, a indústria pode se cadastrar na plataforma e informar oportunidades, assim como pessoas interessadas em trabalhar podem cadastrar o currículo e consultar as vagas disponíveis. Há também cursos disponíveis para se qualificar.

“Essa plataforma, além dela fazer essa conexão entre as pessoas e as empresas, também apresenta sobre a legislação vigente e tem toda a questão dos cursos também existentes”, contou Sandro Volpato Faria, gerente de Responsabilidade Social da FIESC.

Segundo o gerente, esse espaço voluntário, extrapolou a questão só da indústria, mas sim de todos os segmentos econômicos catarinense. ”Voluntariamente, qualquer pessoa pode cadastrar seu currículo, qualquer empresa, pode colocar a sua vaga, independente da indústria. Então, por exemplo, a pessoa seja autônoma ou uma empresa, ela pode também colocar os seus produtos, seus serviços à disposição para esse público de pessoas com deficiência”, destacou.