As rodovias federais catarinenses estão entre as mais violentas do Brasil. Em 2021, o estado ocupou a segunda posição no ranking de acidentes e a quarta em mortes registradas nas estradas federais. Os dados estão no anuário de segurança pública da Polícia Rodoviária Federal. Foram 7.881 acidentes e 357 vidas perdidas.
Mesmo diante de tantas tragédias, as estatísticas muitas vezes parecem distantes quando, entre estes números, não estão familiares, amigos próximos ou algum conhecido. Neste contexto, o ND traz nesta reportagem a história de uma das milhares de vidas impactadas pelas tragédias do trânsito. O relato é de um morador de Gaspar, no Vale do Itajaí, sobrevivente de dois acidentes na BR 470 em um intervalo de seis anos.
O primeiro acidente
Com nove anos, Filippi Ayroso precisou tomar uma das decisões mais importantes da vida. Com o fim do casamento dos pais foi preciso escolher com quem morar. O menino decidiu viver com o pai e eles foram morar em Barra Velha no litoral norte do estado. Mas, uma viagem marcaria para sempre esta história. Era uma manhã de sábado, sete de janeiro de 2012. Pai e filho saíram de casa em direção a Gaspar para visitar familiares.
“Aquele dia a gente saiu seis horas, cinco horas da manhã de casa. Quando a gente chegou na BR 470, um pouquinho antes da entrada de Ilhota do Baú, um carro foi ultraar na contramão e pegou de frente com a gente. Eu estava no banco do lado, no carona e por um milagre de Deus eu sobrevivi. O vidro do carro machucou todo o meu rosto. Entrou vidro na cabeça, embaixo do queixo, nas pernas e acabei quebrando o fêmur nesse acidente”, relembra.
Filippi foi levado a um hospital de Timbó. “Fiz a cirurgia para colocar a platina no fêmur [esquerdo]. E depois que eu sai da mesa de cirurgia eles vieram me contar que o meu pai tinha falecido no acidente”, conta. O pai do Filippi morreu no local da colisão.
“Eu tinha 13 anos na época e para mim foi a dor mais horrível na minha vida sabe. Porque eu só tinha o meu pai. Morava só eu e ele. A gente era muito parceiro. O meu pai era tudo pra mim”, relata o jovem emocionado.
A recuperação pós-cirurgia levou cinco meses. Ayroso não conseguia andar, precisou parar de ir a escola por um tempo e chegou a desenvolver um quadro depressivo.
“E eu ficava em casa, acabei enfornado dentro de casa. Eu não tinha vontade de sair, vontade de nada, eu fiquei realmente dentro de casa 24 horas por dia, eu não saia pra nada”, recorda.
Por causa do acidente ele foi morar com a mãe em Ilhota e mudou para Gaspar um ano depois. “Aí eu comecei a trabalhar de volta e a minha vida começou a caminhar um pouco. Mas, foi muito difícil esse processo de conseguir superar a dor do meu pai da perda dele”.
O segundo acidente
Filippi estava em novo momento da vida. Em um aplicativo de relacionamento conheceu aquela que mais tarde se tornaria a esposa dele. Antes, porém, o casal precisaria superar junto um novo trauma envolvendo mais um acidente de trânsito. Ele estava com 19 anos e trabalhava de madrugada em uma indústria da região.
Para complementar a renda, durante o dia produzia canecas personalizadas e estampava fotos em azulejos. A quinta-feira, oito de novembro de 2018, seria mais uma correria de entregas das encomendas e também marcaria o quatro dia desde o primeiro encontro com a Francine.
“No dia anterior [7] eu tinha ido pra Indaial visitar ela e conhecer a filha dela, ela tem uma filha pequena”, começa. Naquele dia [8] na parte da tarde eu fiz todas as encomendas dos meus clientes e depois eu sai para entregar. Tinha uma entrega em para fazer em Blumenau. Eu mandei mensagem para ela, falei assim pra ela: quinze minutos estou indo ai te ver. Só que a gente já tinha se visto no dia anterior, não precisava, não tinha programado. Ai eu falei, daqui há quinze minutos to indo aí te ver, to chegando aí”. Mas, Filippi não chegou!
Além da natação, Filippi Ayroso também é paratleta de vôlei sentado – Vídeo: VÍDEO VOLEI SENTADO – ARQUIVO PESSOAL DIVULGAÇÃO ND (2)
“Tinha bastante trânsito [BR 470], eu estava indo tranqüilo com a moto. Próximo a entrada de Pomerode tinha um carro na minha frente e aí do nada o carro saiu e veio uma BMW pela contra mão. Eu não tive muita reação. Tentei tirar o máximo possível, mas acabou que não foi o suficiente”, afirma.
O veículo atingiu de frente a moto pilotada por Filippi. “A minha moto era uma esportiva com guidão baixo. A minha perna esquerda ficou grudada no guidão da moto e eu fui projetado pra frente. Nessa que eu fui projetado pra frente a minha perna ficou. A minha sorte que eu estava de calça e com uma mochila onde tinha uma capa de chuva. E eu cai de costas no chão. Quando eu cai de costas a mochila amorteceu as minhas costas porém o cotovelo eu bati no chão”, continua.
“A minha sorte é que atrás vinha uma mulher que trabalhava no Samu. Automaticamente ela pegou o carro dela já colocou na minha frente como barreira. Ela foi um anjo que apareceu no momento assim”, desabafa.
A mulher era Wiviani Francisconi socorrista e motorista de ambulância do Samu. “Quando eu cheguei lá eu achei que ele nem estava mais vivo. Era muito sangue. A perna dele já estava totalmente amputada. E aí já não tinha muito o que fazer. Tentei estancar o sangue e fiz o acionamento do Arcanjo porque não tinha como chamar a ambulância por terra. Se não tivesse o Arcanjo naquele momento não tinha dado tempo”, comenta.
No helicóptero Arcanjo do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina, Filippi não conseguia mais ficar acordado e teve uma parada cardíaca revertida pelos socorristas. Ele foi levado para o hospital Santa Isabel em Blumenau.
“Fiquei sabendo do acidente do Filippi por um amigo dele que eu nem conhecia ainda. Esse amigo eu acredito que tinha aqueles grupos de WhatsApp de trânsito, acabou recebendo um vídeo do acidente do Filippi e entrou em contato comigo por Facebook e mandou o vídeo. Eu na hora sabia que era o Filippi. Fiquei sem reação, em choque, não sabia o que fazer. A minha única vontade foi querer saber aonde, em qual hospital ele tinha sido encaminhado. Eu só rezava e agradecia a Deus por pelo menos ele ter chance de vida porque a gente sabe que esses acidentes de moto a maioria são fatais”, conta Francine Pereira da Cruz, então namorada do Filippi que depois viria a ser a esposa dele.
Quando chegou no hospital o quadro de saúde dele piorou. Filippi lembra que uma hora tudo ficou branco e ele só acordou cinco dias depois ainda na UTI. Ele estava com um braço quebrado e sem a perna esquerda, a mesma que havia quebrado quando se acidente com o pai seis anos antes. “Eu olhei a minha situação, vi o estado que estava e tive que fazer uma escolha. Ou eu sofro com isso o resto da minha vida ou aceito, bola pra frente e tento levar isso da melhor forma possível”.
Ao todo foram 20 dias de internação.” Eu ganhei um caderno no hospital de uma amiga e neste caderno eu escrevia todos os motivos por qual eu era grato”, rememora ao folhear as várias páginas com mensagens de gratidão. Em uma dela, Filippi agradece por ter ganhado da equipe médica um pedaço de pizza em um dos últimos dias no hospital.
Trauma e recuperação
Com um braço quebrado e a perna esquerda amputada, Filippi dependeu de ajuda da mãe e do irmão para conseguir se adaptar a nova condição física. Isso o incomodava de tal forma que ele começou a pular dentro de casa. “Eu não conseguia usar muleta ainda por causa do meu braço. Então fazia as coisas pulando, me obriguei a me adaptar, aprender a me equilibrar. Até então ficava virado num saci aqui em casa”, recorda.
Filippi chegou a engordar 26 quilos durante a recuperação. “Eu sempre fui um cara que gostava de correr, sempre pratiquei atividade física. Eu me olhava no espelho eu não era mais aquele cara para cima, bonito. Antes do acidente sempre falava eu era um cara bonito, magro, gostava de correr. ´Pô´ não era mais aquele cara”.
Depois do acidente ele evitou ar durante um bom tempo pela BR 470. “Por causa desta rodovia a minha vida mudou duas vezes. Uma imprudência no primeiro e no segundo acidente. Ainda bem que agora eles tão duplicando”. Filippi está com 23 anos e está recuperado. Na última terça-feira ele esteve em Florianópolis para colocar a primeira prótese e melhorar a qualidade de vida.
Superação
Em dois de outubro de 2019 o paradesporto entrou na vida do Filippi. Ele começou a nadar. Na época ele estava acima do peso e fumava. “A natação me ajudou a parar de fumar”. Em 2020, ele participou da primeira competição como paratleta pela equipe de Blumenau. Viajou pela primeira vez de avião para Vitória no Espírito Santo.
“Foi logo em Vitória que eu fiz a minha primeira competição”, lembra sobre o nome da cidade relacionando com a vitória por estar vivo.
O jovem também pratica vôlei sentado e está cheio de expectativas. “O meu sonho de verdade é chegar numa paralimpíada que nem agora vai ter em Paris, tanto pela natação quanto pelo vôlei sentado, se for pelos dois gratidão, mas qualquer um, o meu sonho mesmo é chegar numa paralimpíada, numa competição de alto nível”.
Filippi afirma estar na melhora fase da vida e na melhor versão dele. “Então hoje eu posso dizer uma palavra que resume o que eu sou hoje: extraordinário”, comemora.
SC Não Pode Parar
A campanha idealizada pela FIESC em parceria com o Grupo ND tem promovido uma reflexão sobre o papel de cada cidadão na construção de um trânsito mais seguro especialmente nas rodovias federais do estado. Para o Filippi que sobreviveu a duas tragédias na BR 470, as pequenas atitudes é que fazem a diferença entre viver ou morrer em uma estrada.
“Às vezes, em uma fração de segundos, a gente pode causar um acidente e tirar a vida de alguém. Trânsito é cautela, é responsabilidade. Se colocar no lugar do outro toda vez que você for dirigir seu veículo, carro, moto. O que você não quer para você não queira para os outros. Tenha responsabilidade. Por irresponsabilidade infelizmente aconteceram fatalidades na minha vida”.
FRASES
“E viver, receber aquela notícia que ele [pai] tinha falecido foi pior do que perder uma perna”, Filippi Ayroso ao relembrar os dois acidentes.
“Foi um anjo de verdade porque ela cuidou de mim”, Filippi sobre a socorrista do Samu que parou para ajudar no momento do acidente.
“A vida pra mim foi um presente”, Filippi ao comemorar a vida.
“Porque não é uma coisa fácil a gente sabe, mas o importante era a vida, ele estar vivo, isso que importava pra mim”, Francine esposa do Filippi.
“O esporte pra mim ele representa a transformação na minha vida”, comenta Filippi.
“Eu vejo muita irresponsabilidade no trânsito todos os dias, principalmente quando eu estou na BR 470”, pontua Filippi.
“As pessoas precisam entender que qualquer erro mínimo elas podem tirar a vida de outra pessoa”, desabafa Filippi.