
Bibliotecário e mestre em educação e cultura pela Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), Alzemi Machado atualmente coordena a Hemeroteca Digital Catarinense da Biblioteca Pública Estadual. Um de seus minuciosos trabalhos como pesquisador independente resultou no livro “O Carnaval das Grandes Sociedades em Desterro/Florianópolis 1858 a 2011”, que ele pretende lançar ainda em 2020, após cinco anos buscando fontes, fotografias e entrevistas.
O Carnaval da forma que conhecemos hoje no Brasil sucedeu o Entrudo, de origem portuguesa. Por que houve esta transformação?
O Entrudo chega com o colonizador. Há registros em Olinda (PE), no ano de 1533, da prática do Entrudo, que consistia em jogar baldes ou seringas com água, bolas de cera, restos alimentares e também detritos.
Existiam dois tipos: o familiar, que acontecia no ambiente doméstico e era realizado por adultos de ambos os sexos, crianças, e escravos (sendo que estes eram os alvos, e não podiam revidar). Era validado pela elite, inclusive com participação da corte. Já o popular era realizado nas ruas, por pessoas pobres, alforriados e escravos, sendo livre o revide.
O Entrudo era muito violento, tanto que, em Desterro, em 1832, a Câmara Municipal proíbe a sua prática, e no Rio de Janeiro, em 1841. Mesmo proibido, resistiu no século 19. A partir de 1830, na Europa, começam, a surgir os bailes de fantasia e de máscaras, bem como alteração nos ritmos dançantes, substituindo os bailados, por ritmos mais rápidos.
No Brasil, é realizado em 1840, no Hotel Itália (Rio de Janeiro), o primeiro baile de máscaras. Essa nova forma de realizar o Carnaval, denominado “civilizatório”, foi a maneira encontrada pela burguesia de enfrentar o “violento e bárbaro Entrudo”.
Logo vão surgir as sociedades bailantes e as que irão realizar desfiles com fantasias, bandas de música pelas cidades. Vão surgir também as lojas de vendas de fantasias e órios, inicialmente em estilo dominó e, depois, pierrôs, palhaços, astrólogos, oficiais, sultões, etc.
Não esquecer também o Zé Pereira, iniciado pelo português José Paredes, em 1846, no Rio de Janeiro, que saía às ruas acompanhado de um bumbo.
Os primeiros registros do Carnaval na Ilha datam de que época?
Datam de 1858, com a fundação da Sociedade Carnaval Desterrense, que organiza o primeiro desfile pelas ruas com fantasias. Neste mesmo período, são fundadas a Sociedade União Carnavalesca e a Sociedade Harmonia Carnavalesca, que organizam bailes.
Como eram os primeiros desfiles?
Não se diferenciavam dos desfiles de outras capitais e cidades. Sociedades bailantes, com desfiles, blocos de rua, corso (desfile de carros automotivos fantasiados, perdurando de 1900 a 1920), cordões, ranchos e, a partir de 1928, no Rio, a fundação da escola de samba Deixa Falar.
Aqui, a Protegidos da Princesa foi fundada em 1948, sendo a mais antiga escola em atividade, porém, entre os anos de 1946 e 1948, já haviam sido fundadas as escolas de samba Narciso e Dião, a primeira da praia de Fora, e Unidos do Chapecó.
Até praticamente o final da década de 1960, os desfiles em torno da praça 15 de Novembro eram realizados pelas sociedades, escolas de samba, blocos, cordões, boi de mamão, cacumbi e pau de fita. Tínhamos um Carnaval diferenciado, com a participação de grupos relacionados com a cultura popular, ou seja, uma marca de identidade exclusiva.
Até uma parte daquela década, os desfiles eram organizados pelo Centro de Cronistas Carnavalescos, uma entidade privada composta por jornalistas e intelectuais e, com apoio de empresários, bancavam parte dos recursos.
Com o ingresso da Prefeitura, e depois com a criação da Diretur, começaram as manifestações de exclusão de determinadas agremiações, priorizando algumas em detrimento de outras. Assim, fomos perdendo ao longo dos anos as nossas particularidades, o que nos projetava como o terceiro melhor Carnaval brasileiro.
O nosso Carnaval era moderno para a época?
Sim, dentro das nossas peculiaridades e estrutura. O problema foram as “adaptações”. Dividi-lo para outros espaços ajudou a desconfigurá-lo. O fenômeno carioca de realizar um produto carnavalesco de alta qualidade, que são as escolas de samba, é uma marca deles, genuína. Agora, não acho nada legal querer copiar ou importar modelos. A importação de determinados padrões desfigurou o Carnaval ilhéu.

Por que o interesse em pesquisar sobre as sociedades carnavalescas que fabricavam carros alegóricos e de mutação?
Pesquiso a temática do Carnaval em Desterro e Florianópolis, particularmente, as origens das grandes sociedades carnavalescas. O desfile destas sociedades marcaram a minha infância, adolescência e fase adulta, pois ia assistir aos préstitos junto à praça 15 e na avenida Paulo Fontes. Ficava encantado com o colorido daqueles carros e os estágios de mutação, que eram sempre uma surpresa.
Como pesquisador, o meu interesse despertou quando trabalhava na Casa da Memória, e, para tristeza, constatei uma lacuna no acervo de trabalhos e poucas fotografias retratando a temática. Fiquei intrigado: como uma tradição tão forte no nosso Carnaval contava com poucos registros?
Conheci os irmão Henrique e Sérgio Xavier, que fizeram parte da diretoria e na confecção de carros da Granadeiros da Ilha, e começamos a trocar informações. Assumi um compromisso junto a eles que iria pesquisar a história destas agremiações.
Quais eram as grandes sociedades que concorriam no Carnaval de Florianópolis?
Mais de 40 sociedades foram fundadas ao longo dos séculos 19 e 20. Muitas delas tiveram vida efêmera, às vezes duravam um único Carnaval. A pioneira foi a Sociedade Carnaval Desterrense, fundada em 1858 e desfilando com um carro alegórico em 1860.
De 1878 a 1892, tivemos duas sociedades fantásticas e que deixaram um legado forte para a consolidação do nosso Carnaval: a Diabo a Quatro e a Bons Archanjos, que desfilavam com criativos e luxuosos carros de críticas, alegóricos e de reclames. Além de realizarem desfiles e bailes, eram engajadas politicamente, realizando eventos em prol das causas abolicionistas (compra de cartas de alforrias) e da extensão do voto feminino.
Mas tivemos outras que contribuíram, como a Netos do Diabo, Pantomineiros, Filhos de Minerva, Guarani, Saca Rolhas, Repentinos, entre outras. Em 1949, vão surgir a Tenentes do Diabo (inicialmente fundada em 1915, reaparecendo, em 1949) e a Granadeiros da Ilha. Mais tarde, a Vai ou Racha (1958), Trevo de Ouro (1969) e Limoeiro (1977).
O que te surpreendeu na pesquisa?
Desterro não estava tão “isolada” dos acontecimentos culturais e políticos, principalmente a partir da metade do século 19, como alguns insistem em afirmar. Tínhamos teatro, biblioteca, clubes, escolas de primeiras letras e liceu, concertos musicais, saraus literários, imprensa, telex e porto, o que ajudava na circulação das informações e no contato externo.
No campo carnavalesco, a primeira sociedade fundada no Brasil foi o Congresso das Sumidades Carnavalescas, no Rio de Janeiro, em 1855. A nossa primeira foi fundada três anos após, muito à frente de outras capitais, como São Paulo (1860), Recife (1870), Porto Alegre (1873) e Salvador (1884).
Confeccionávamos carros com as mesmas desenvolturas (luxo, criatividade, acabamentos) em qualidade superior às sociedades de outras capitais. Tanto que, em 1911, o carnavalesco da Filhos de Minerva, Alfredo Juvenal, foi contratado pela sociedade carioca Democráticos para fazer seus carros, conquistando a Palma da Vitória.
O jornal carioca “Gazeta de Notícias”, em 1913, enfatizava que em Florianópolis tem o mais lindo Carnaval do Brasil. O que surpreendeu foi que em Desterro/Florianópolis tínhamos uma particularidade única no Carnaval brasileiro: a técnica de “maquinismo” ou mutação.
De onde vem este ineditismo?
No Brasil e no mundo sempre tivemos a confecção de carros alegóricos, de críticas (voltadas ao mundo político e social) e de reclames (propagandas). A sociedade Bons Archanjos vai apresentar uma novidade que marcará para sempre o Carnaval brasileiro, em 1885: o carro “A Grande Flor Misteriosa”, que executará uma série de movimentos que resultaram no desabrochar das pétalas.
A técnica denominada inicialmente de “machinismo”, depois rebatizada para mutação, consiste em movimentos realizados por tração humana e acionados por manivelas e cabos de aço escondidas na parte inferior dos carros.
Pode ser que esta técnica esteja relacionada com a “maquinaria teatral”, desenvolvida no teatro italiano, a partir das concepções no campo da cenografia, culminando na criação de cenários móveis e a introdução de efeitos especiais.
Destaca-se ainda que outras sociedades situadas nas cidades de Tijucas, São Francisco do Sul e Laguna irão reproduzir esta técnica em seus carros. Pesquisadores de renome como Fernando Pamplona e Eneida de Moraes, afirmam que a mutação é originária do nosso Carnaval.

Comparando-se os carros de hoje com os da época, o que se perdeu?
As sociedades continuaram inovando em seus desfiles. Em 1958, o carro “O Navio”, da Granadeiros da Ilha, criação de João dos os Xavier, fez uma outra revolução na mutação, pois, pela primeira vez, irá ocorrer mutação em estágio vertical e horizontal, quando o mastro do navio sobre e depois é feita a mutação de uma rampa em madeira, projetando uma moça que entrega flores à esposa do prefeito Osmar Cunha.
A Trevo de Ouro, em 1987, apresenta o carro denominado “Sonho de uma Princesa”, um castelo de três andares que elevou-se a 12 metros e executando 21 mutações. A Limoeiro em 1982, apresenta o carro “Jato Folião”, que inovará em efeitos especiais, pois, pela primeira vez, é utilizado áudio junto aos movimentos.
Obviamente que os carros alegóricos apresentados pelas escolas de samba são em proporções maiores, com mais porte, porém não executam movimentos, no máximo, realizam movimentos rotacionais.
As sociedades carnavalescas de carros alegóricos e de mutação foram absorvidas pelas escolas de samba?
É preciso lembrar que as escolas de samba de Florianópolis contratavam, principalmente, os serviços dos carnavalescos da Granadeiros da Ilha e da Tenentes do Diabo na construção dos carros alegóricos. Depois, com o fim das sociedades, muitos destes carnavalescos aram a incorporar os quadros agregativos das escolas.
Na década de 1980, quatro integrantes da sociedade Limoeiro foram convidados pela diretoria da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel (Rio de Janeiro) e ficaram por cerca de 15 dias nos galpões, ensinando técnicas de construção de carros alegóricos.
E pensar que, não faz muito tempo, uma escola de samba nossa contratou os serviços de carnavalescos de Parintins (AM) para dar movimentos em suas alegorias. Com tantos mestres, o dito popular deve ser lembrado: “casa de ferreiro, espeto de pau”.
Ressalta-se ainda que, na década de 1970, o desfile dos carros alegóricos que compunham a Festa da Uva, em Caxias do Sul (RS), eram produzidos pelos integrantes da família Xavier (Luizinho, Carlos, Mario e Lelo), ligados à Granadeiros da Ilha.
Ornamentação dos carnavais de São Paulo e de clubes, como a Sociedade Tália, de Curitiba, eram feitas pelos carnavalescos das nossas grandes sociedades.
Houve tentativas de reviver o desfile de carros alegóricos e de mutação na arela Nego Quirido. Por que não vingou?
Tivemos de 1950 a 1993 o desfile das grandes sociedades, que, indiscutivelmente, ajudou a transformar, popularizar e consolidar o Carnaval ilhéu. Sem a força e a tradição das sociedades, questiono se teríamos a tradição carnavalesca tão presente por aqui.
Na gestão do prefeito Dário Berger, em 2007, o secretário de Turismo, Tiago Silva, liberou recursos para o retorno da Granadeiros da Ilha e da Tenentes do Diabo. De forma bastante precária, foi utilizado o galpão onde funcionou a Trevo de Ouro, no Itacorubi, para a confecção de dois carros (alegórico e mutação). Com pouca estrutura e bancada unicamente com recursos públicos, desfilaram na Nego Quirido.
Em 2011, por iniciativa do secretário de Turismo, Homero Gomes, as sociedades retornaram à praça 15 – aliás, palco de onde nunca deveriam ter saído –, sendo este o derradeiro desfile. Sempre discordei da transferência para a arela, pelo fato de que estas agremiações sempre tiveram forte apelo popular e com desfiles abertos.
Outro fator é que, por uma questão de escala, estes carros, por possuírem um porte menor em comparação aos carros de escola de samba, devem estar próximos do espectador, estabelecendo uma escala visual proporcional ao tamanho do objeto, acompanhando assim os estágios de mutação. Quando exibido numa arela, os efeitos a alegoria e a mutação se perdem, ficando o espectador acima do objeto (junto às arquibancadas).
Outro aspecto é que estas sociedades eram únicas no Brasil, e a técnica de mutação desenvolvida por aqui por que não foram tombadas como patrimônio imaterial? O poder público foi omisso. O olhar ficou às escolas de samba.
Reparem que, no mesmo período, teve-se a ideia de construir a Cidade do Samba, e sequer foi lembrada a cessão de uma parte para as grandes sociedades. Sem dinheiro, sem sede própria, sem possibilidades de manter a tradição, o que inclui o ree das técnicas às futuras gerações e a adaptação junto às tecnologias, constituíram fatores para não vingarem.
O que o Carnaval da Ilha recupera ao levar os ensaios das escolas de samba para o entorno da praça 15?
A praça 15 e adjacências continuam sendo a marca forte do nosso Carnaval: livre, leve e solto. Recupera uma parte da nossa identidade. Na rua, tem o encontro da diversidade, do exponeísmo, do sujo, do requinte, dos blocos organizados e desorganizados. Todas as estratificações sociais se encontram. É aberto, único, transparente, inclusivo. Não tem cronômetro para brincar, não tem limitação de foliões.
Na arela, não pode estar embriagado e, às vezes, tem que correr e, muitas vezes, não pode sambar. É muita regra e pouca descontração. Quero ver é sambar no paralelepípedo molhado, de salto alto, como faziam Nega Tide, Maristela, Jutiara e tantas outras.
Quem assiste aos desfiles das escolas em torno da praça, verifica uma nítida diferença: a descontração dos integrantes. E isso é Carnaval, é a cara do nosso espetáculo.