Poucas são as edificações em Florianópolis que têm mais de um século de história. Centenas de casas antigas foram demolidas pela falta de consciência de sua importância como patrimônio cultural, outras vieram abaixo por conta do descaso e de herdeiros gananciosos, e muita coisa permaneceu só em fotografias ou nos bicos de pena do mestre Domingos Fossari, por exemplo.

Um exemplar de construção histórica que se mantém em pé é o Mercado Público, cuja primeira ala foi inaugurada no dia 5 de fevereiro de 1899. De lá para cá, foram décadas e décadas de parceria com a cidade – com os altos e baixos que caracterizam todos os casos de amor! O 125º aniversário do prédio será comemorado nesta segunda-feira.
O que mais chama a atenção, tirando a construção, é a relação de cumplicidade do Mercado com a cidade. Isso pode ser constatado no dia a dia, mesmo que tenham ficado para trás os tempos em que a casa era o principal centro comercial, onde até as madames iam – quando não mandavam as empregadas – comprar peixe, carne, pão e hortaliças.
Os supermercados se multiplicaram, há peixarias em todos os bairros, o comércio está em cada esquina dos balneários – mas só o Mercado mescla o varejo e a prestação de serviços com o encontro, o convívio, aquela sensação de confraternização que as alas, os corredores e os boxes oferecem aos usuários.
“O Mercado é o principal destino da cidade, a sala de visitas de muita gente que vem e sempre retorna”, diz Beto Barreiros, dono do bar Box 32.

“Somos uma referência, o lugar onde todo turista acha o que procura, e por isso é o local onde ele vai primeiro”, reforça o empresário, cujo bar vai completar 40 anos no dia 3 de março.
“Após a licitação de 2013, o Mercado tomou outro formato, tendo a revitalização como ponto crucial”, afirma o presidente da associação dos lojistas, Osvaldo Martins Filho. A mudança definitiva do mix, em 2015, deu uma nova dinâmica ao estabelecimento – para a alegria de uns e a frustração dos mais saudosistas.
“Hoje, o Mercado tem um mix variado, com operações em diversos setores e uma gestão istrativa entre prefeitura e associação dos comerciantes que garante segurança 24 horas por dia, limpeza e manutenção constante”, reforça Martins Filho. “E ele vem se adequando constantemente para melhor atender ao turista e a todos os frequentadores.”
Primeira ala foi entregue em fevereiro de 1899 4s5s62
Indiretamente, a história do Mercado Público de Florianópolis começou em 1845, quando a visita iminente do imperador D. Pedro 2º fez as autoridades do Desterro, antigo nome da cidade, mandarem para a outro lado do rio da Bulha (o canal da atual avenida Hercílio Luz) as barraquinhas que comercializavam pescados e alimentos na praça central. Até então, na área próxima à catedral, se aglomeravam mascates, oleiros, pescadores e colonos que vendiam, em condições precárias, sua produção aos moradores da ainda incipiente vila à beira-mar.

Foi nesse ambiente que a cidade começou a discutir a necessidade de erguer um edifício que abrigasse os comerciantes. Jornais de situação e de oposição e as poucas pessoas influentes do Desterro se envolveram numa polêmica sobre a localização do mercado, até que a decisão recaiu sobre uma área no largo do palácio, próxima ao ponto onde fica hoje a praça Fernando Machado.
Em 5 de janeiro de 1851, depois de interrupções, loterias e empréstimos para financiar o empreendimento, o Mercado Público foi inaugurado, organizando o caótico comércio de víveres na Ilha. Na época, o Desterro tinha em torno de 20 mil habitantes.
Com o crescimento da população e das atividades comerciais e portuárias, o primeiro mercado da cidade ou a não dar mais conta do movimento. Em 1895, com a cidade rebatizada com o nome de Florianópolis, surgiu o debate sobre a construção de um novo mercado. As opções eram o final da avenida Mauro Ramos, na praia de Fora, ou o largo da Alfândega. A segunda alternativa foi a eleita, e em 5 de fevereiro de 1899 a ala norte foi entregue, com iluminação a gás acetileno, uma novidade para a época.
Grupo ND foi fundamental ao denunciar irregularidades 3l335y
O Mercado Público de Florianópolis enfrentou um processo de degradação da estrutura física e das relações dos lojistas com a Prefeitura de Florianópolis, que só chegou ao fim em meados da década ada. Havia sérios riscos de incêndio (como o que destruiu a ala norte, em 2005) e se banalizavam os casos de transferência de boxes à revelia da lei, além de atrasos no pagamento dos aluguéis e taxas municipais. Foi quando, por volta de 2010, a Justiça entrou no circuito, dando início a uma transformação que alterou radicalmente as características do estabelecimento.
O Grupo ND teve um papel importante nessa transição, porque denunciou as irregularidades existentes, que o Poder Público fingia ignorar. Naquele ano, o Tribunal de Justiça do Estado determinou que a prefeitura realizasse a licitação para os comerciantes, processo que começou em 2011. Após questionamentos do Tribunal de Contas e de ações judiciais dos comerciantes, os vencedores foram divulgados em 2013.
Hoje, apesar de problemas pontuais e ajustes que precisam ser feitos, o Mercado a por dias melhores. O comerciante Beto Barreiros diz que na última década o estabelecimento avançou mais do que se previa com a licitação. Há conflitos de interesses e necessidades que surgem por conta da idade do prédio, que exige intervenções constantes, mas ele diz que a prefeitura de Florianópolis tem se mostrado sensível aos pleitos dos comerciantes. “Está cada dia melhor”, garante.
O que os lojistas pedem é a instalação de um sistema de ventilação interna para melhorar as condições de quem trabalha ali e frequenta o estabelecimento. Alguns boxes têm ar condicionado, porém, “o ideal é climatizar todo o interior do prédio”, afirma Barreiros.
Como frequentador contumaz de mercados – conhece 39 deles pelo mundo a fora –, ele se orgulha de ter recebido autoridades, atletas e figuras da arte e da televisão, que ajudaram a difundir o nome de seu bar no Brasil e fora dele.
No Mercado como se estivesse em casa 196x6d
Nativas da Ilha de Santa Catarina, a aposentada Vera Lúcia Martins e sua filha Gabriela Ebl, professora de educação infantil da rede municipal de ensino, costumam ir ao Mercado Público para provar os frutos do mar que são a especialidade da maioria dos restaurantes da casa. Elas gostam da descontração do local, onde se sentem à vontade e podem “conhecer mais as raízes da nossa cultura”, como diz Gabriela. O avô dela teve comércio no Ribeirão da ilha e na avenida Mauro Ramos, até a década de 1970, onde fornecia lanches aos estudantes do Instituto Federal de Santa Catarina.

Vera Lúcia é manezinha assumida e lembra do tempo em que apenas uma linha de ônibus por dia atendia aos usuários do Ribeirão da Ilha.
“A gente vinha de manhã e só voltava para casa à noite”, recorda. “Ao chegar em casa, após a aula, tinha que pegar lenha no morro e depois da janta fazia renda de bilro”. Eram tempos difíceis, porque os pais repreendiam quem não aprendesse a fazer renda ou executar as tarefas domésticas.
O Mercado Público era referência para quem morava no interior da Ilha, muito isolado da cidade, com sua culinária peculiar e sua rigidez de costumes. “Minha mãe só comia caldo de peixe e viveu com saúde até os 85 anos”, conta Vera Lúcia, dizendo que a ova de tainha também sempre teve presença garantida no cardápio dos ilhéus. Neste sentido, para mãe e filha, o Mercado Público de Florianópolis continua sendo um ambiente bastante convidativo.
Frigorífico eliminou necessidade de descartar produtos 6pm2f
Em 1931, a ala sul foi erguida com o fim de abrigar boxes para a venda exclusiva de pescados e de carnes. Ali operavam 16 açougues, 13 deles destinados exclusivamente à venda de carne verde, dois para carne de porco e um para miúdos, além das bancas de peixes. Em 1938 foram instaladas as primeiras câmaras frigoríficas, sendo que a maior delas podia guardar até duas toneladas de pescados. A partir dali não foi mais preciso jogar creolina e inutilizar os produtos frescos não vendidos até o início da tarde por falta de refrigeração. O frigorífico funcionou até 1988.

Em 20 de março de 1984, o prédio do Mercado foi tombado como patrimônio histórico municipal. Na mesma época, o vão central foi fechado ao tráfego de veículos e uma reforma começou a melhorar a aparência do edifício.
A nota triste da fase mais recente foi o incêndio que destruiu grande parte da ala norte, em agosto de 2005. Nos anos subsequentes à reconstrução, a casa ou por turbulências que resultaram na alteração do mix e na consolidação do Mercado como ele se encontra hoje em dia.