Resistindo ao baixo orçamento, rainha da Nação Guarani desenha e confecciona as próprias roupas 683b21

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Desde 2019, a cozinheira Zezilaine Coelho da Silva Fraga confecciona as roupas que veste na arela Nego Quirido

Quando o dia do desfile chegou, Zezilaine Coelho da Silva Fraga, à época musa da Nação Guarani, não tinha fantasia. Era Carnaval de 2020. “A Kika [a carnavalesca da agremiação, Kris Regina de Souza] me entregou um cinturão branco que tapava a barriga. Mas, e o costeiro? E a cabeça? Eu não tinha”, lembra a hoje rainha, de 38 anos. Tudo estava a ser feito.

Financeiramente, era um ano crítico para a Nação Guarani. A agremiação atravessa montanhas para colocar o carnaval na arela com recursos bem inferiores àqueles recebidos pelas demais. Apostando no enredo “Sabedoria ancestral: O Ecoar de uma Nação Transforma Lixo em Criação”, a solução foi montar fantasias com resíduos sólidos.

O perfil faz parte de uma série de reportagens do ND Mais com as rainhas das escolas de samba de Florianópolis que vão desfilar no Carnaval 2024.

Rainha da Nação Guarani produz suas fantasiasDesde 2018, Zezi produz as suas roupas de Carnaval. Ela acredita que assim está mais alinhada à realidade da escola e a sua própria – Foto: Leo Munhoz/ND

A ideia por trás da roupa de Zezi, seu apelido carinhoso, era construir uma roupa com lacres de latinhas que ela ou meses guardando – e pedindo aos amigos que fizessem o mesmo. Após pegar restos de tecido e poucos apetrechos, a musa ou a madrugada de sábado adiantando a peça no barracão improvisado que tem em sua casa, em Palhoça, próxima ao endereço da sede da escola, no bairro Caminho Novo.

Faltando poucas horas para o início do desfile, Zezi suava tingindo as penas brancas que ganhou – e que precisavam ser pratas. A fantasia ficou pronta às 0h. Ela vestiu a roupa recém-confeccionada, foi ao ponto de ônibus e pegou a linha Madrid da primeira hora da madrugada, em direção à arela.

Instantes antes do início do desfile da Nação Guarani, Zezilaine chegou com lacres de latinha brilhando em forma pulseiras, compondo adereços presos ao top e desenhando fivela que prendia a sandália gladiadora ao pé da então musa. Deu tempo para ela levar a arela o seu famoso “samba leve”, alcunha dada pelo diretor Mazinho, que vê a leveza e o charme no o de Zezi.

No Carnaval de 2020, Zezi foi à arela com uma roupa produzida com lacres de latinha – Foto: Arquivo/Anderson Coelho/NDNo Carnaval de 2020, Zezi foi à arela com uma roupa produzida com lacres de latinha – Foto: Arquivo/Anderson Coelho/ND

Rainha da Nação Guarani, estilista, costureira e cozinheira 6s356m

Normalmente, a roupa de toda a Corte é desenhada e costurada por carnavalescos. A exceção fica por conta da fantasia do Volta à Praça XV, momento em que as musas, princesas e rainhas colocam a criatividade em jogo. Os custos, que alcançam a casa dos R$ 5 mil, são arcados por cada membro, sem dispêndio à escola, que se dedica às vestimentas das alas.

“É trabalho, barracão e fantasia, feita aos 48 minutos do segundo tempo”, ironiza Zezi ao falar da sua rotina.

As manhãs são dedicadas aos cuidados da família e a sua marmitaria, que istra há três anos. À tarde, os esforços se voltam à casa e ao marido.

“Depois, volto à fantasia. Se tem ensaio, vou ao barracão, e logo volto para casa confeccionar. Tenho que dar um jeito para fazer a minha roupa”, afirma.

A confecção de suas roupas começou em 2019, três anos após ela entrar na Nação Guarani  – Foto: Leo Munhoz/NDA confecção de suas roupas começou em 2019, três anos após ela entrar na Nação Guarani  – Foto: Leo Munhoz/ND

Confeccionar as fantasias do Carnaval é uma prática que começou em 2019, três anos após ela entrar na Nação Guarani. Ela teve de aprender a buscar referências, tal como as técnicas de costura e bordado. De lá para cá, construiu um local em sua casa destinado à produção das peças.

Discrepância de orçamento 3y4x2c

Por trás desse acúmulo de funções, há uma limitação financeira e um princípio de estar alinhada com o perfil da Nação Guarani.

“Eu não posso ser mais do que aquilo que consigo ter. Não adianta eu pagar R$ 5 mil para ficar toda cravejada. E como fica a escola?”, destaca a cozinheira. “É o que cabe no nosso bolso”.

O orçamento da Nação Guarani é pequeno. A escola pode receber um limite de até R$ 100 mil da prefeitura de Palhoça. No último ano, o ree foi de R$ 90 mil. Para o Carnaval de 2024, o valor ainda não estava na conta até quinta-feira (1º), segundo o presidente da escola, Lui Vandré.

No barracão da Nação Guarani, no bairro Caminho Novo, há um trabalho persistente de construção de fantasias a partir do material das antigas – Foto: Leo Munhoz/NDNo barracão da Nação Guarani, no bairro Caminho Novo, há um trabalho persistente de construção de fantasias a partir do material das antigas – Foto: Leo Munhoz/ND

A título de comparação, e considerando só aquilo que é destinado pelos municípios, cada uma das oito agremiações de Florianópolis recebeu neste Carnaval R$ 500 mil da prefeitura da Capital. Ao somar também outros patrocínios, as agremiações da Ilha de Santa Catarina têm um orçamento médio de R$ 700 mil por edição.

Neste ano, a realidade financeira da Nação Guarani ficou ainda mais aquém das demais escolas. Isso porque, até 2023, a escola Jardim das Palmeiras, agremiação de São José, se equiparava à Nação Guarani nos rees. Mas, neste ano, a prefeitura de São José reajustou o valor reado à escola, elevando para R$ 400 mil.

“Nada se perde, tudo se transforma” 5a4s1w

Os baixos rees impõem uma máxima filosófica no barracão da Nação Guarani: ‘nada se perde, tudo se transforma’. Instalado em uma casa onde a maior parte dos cômodos é tomada por sacos de lixo repletos de fantasias adas, cada Carnaval é construído com materiais reaproveitados em adereços de outras edições.

Zezi optou por vestir vermelho neste desfile, a mesma cor que usou ao estrear no Carnaval em 1995 – Foto: Leo Munhoz/NDZezi optou por vestir vermelho neste desfile, a mesma cor que usou ao estrear no Carnaval em 1995 – Foto: Leo Munhoz/ND

No dia 10, a Nação Guarani presta homenagem às mulheres. A rainha Zezi fez uma reivindicação: usar vermelho na fantasia, no lugar do azul e branco da escola. É a mesma cor do vestidinho xadrez com o qual a então menina de sete anos no Morro do Mocotó se “sentia grande” ao estrear no Carnaval em 1995. À época, desfilava pela Protegidos da Princesa, que homenageava Nilson Nelson Machado, o Duduco.

Ao ser questionada sobre quem será a mulher de inspiração para a sua fantasia, ela responde: ‘eu mesma. Por lutar tanto dentro da Nação quando é tão difícil sair na avenida. É muito luta todo ano. A gente chega a desistir, e pensa ‘não, não vou desistir porque já estou aqui”.