O bairro Trindade, um dos mais populosos de Florianópolis, nem sempre teve a agitação e a dinâmica que apresenta hoje em dia. A explosão demográfica e imobiliária que se verificou a partir dos anos 1970/80 mudou a configuração da região, transformando uma área essencialmente residencial e de construções familiares num mar de prédios de escritórios e comércio pujante, além de impulsionar um polo relevante de prestação de serviços.
O entorno da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) é hoje uma das partes mais densamente povoadas da Ilha, próxima ao Centro e a outros bairros importantes da cidade.

Quem morou na Trindade cerca de meio século atrás e circula pelas ruas apinhadas de veículos da atualidade pode fazer uma boa comparação entre os dois períodos. Só havia uma padaria, a primeira farmácia custou a chegar e nem sempre as linhas de ônibus urbanos chegavam a pontos já habitados do bairro. “Lembro da rua geral com paralelepípedos e de quando o leite e o pão eram entregues em carro de boi”, diz Marcelo Antônio Ignácio, 52 anos, dono de uma banca e tabacaria na rua Lauro Linhares.
A expansão da Trindade é um reflexo do crescimento da cidade, incluindo os balneários, especialmente a partir da década de 1970. Alguns anos antes, a região era um vale dominado pela fazenda Assis Brasil, onde foi implantada a UFSC, criada oficialmente em 1960. A instituição nasceu a partir da junção das faculdades de Direito, Medicina, Filosofia, Ciências Econômicas, Farmácia, Odontologia e Serviço Social, todas até então instaladas na área central da Capital. Foi preciso prover a infraestrutura necessária para dar e aos moradores que foram chegando, e parte da população menos favorecida que já morava ali foi empurrada para os morros próximos.
Uma testemunha das mudanças da Trindade 655n1n
Uma das figuras mais antigas da Trindade é o aposentado Pedro Lemos Cavalheiro, 93 anos, que se mudou para o bairro em 1962. “Não havia prédios e o asfalto, quando chegou, era muito fino”, conta ele. O comércio era quase nulo, a uma padaria e uma farmácia. Havia ainda a igrejinha que depois foi incorporada à área da Universidade, a Academia de Polícia – e mais nada. Depois é que chegaram o posto de gasolina, o primeiro supermercado, uma peixaria, alguns bares, os prédios pioneiros, ainda baixos (caso do conjunto Itambé), e as escolas para os filhos das novas famílias da região. Um cinema chegou a funcionar na rua Cônego Bernardo, depois transformado em pensão.
Pedro Cavalheiro foi durante 30 anos gerente nas drogarias Catarinense, em Joaçaba, ville e por fim em Florianópolis. Foi com o resultado de seu trabalho que adquiriu uma casa velha na Trindade, que reformou para criar os três filhos e que hoje, morando só com a mulher, aluga parcialmente para famílias ou estudantes da UFSC. Guarda na lembrança o fusca vermelho com que cruzava a Agronômica a caminho do Centro, onde trabalhava, e também puxa pela memória os tempos de balseiro no rio Uruguai, quando ajudava a levar toras de madeira, nas épocas de cheias, de Mondaí a São Borja, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina.
O padeiro visionário 38y44
A padaria Record, a primeira instalada perto da UFSC, era de propriedade de Antônio Ignácio, pai de Marcelo, o dono da banca Entrelinhas, na rua Lauro Linhares. Ali, o pioneiro manteve o negócio entre 1969 e 2001, atendendo à clientela crescente do bairro. O filho se criou ali, com os irmãos e muitos amigos que jogavam bola nos campinhos de várzea.
“Ainda faltava muito para a construção da avenida que liga a Trindade ao Centro, e daqui até o bairro Santa Mônica era praticamente só mangue”, lembra o comerciante.
Na área onde está hoje o supermercado Angeloni, ao lado do shopping Villa Romana, havia um campo de areia onde os garotos se divertiam.
“Lembro que o primeiro prédio saiu em 1978 e posso dizer que a virada do bairro aconteceu a partir de meados da década de 1980”, diz Marcelo Ignácio. “Também recordo das apresentações de boi de mamão, das procissões e da Festa da Laranja, que atraía muita gente de outros bairros. Quando meu pai decidiu sair da Agronômica para instalar sua padaria na Trindade, foi chamado de louco. Mas ele sabia que o bairro ia crescer muito”.
No tempo das pipas e ruas sem movimento 51315e
Outro comerciante que lembra das peladas no bairro é Fábio de Oliveira, 51 anos, que mantém uma loja de produtos eletrônicos na rua Madre Benvenuta. Ele fala dos jogos de bola no meio da rua, porque não havia tráfego, e da garotada andando de bicicleta, sem ser incomodada pelos motoristas. O clube Paula Ramos e o Independente, time de futebol do bairro, com o campo cercado de eucaliptos, eram muito ativos. “Os meninos empinavam pipas ali perto”, conta.
Foi quando surgiu o avenida Beira-mar, chamada de “obra esperidiônica”, porque foi prometida e executada pelo prefeito Esperidião Amin e muitos a consideravam faraônica, duvidando que saísse do papel. “Bem ou mal, a avenida salvou o mangue, porque o aterro conteve em boa medida a exploração da área preservada”, diz Oliveira. O boom da construção civil trouxe, junto com os novos moradores, os problemas da violência e das drogas, apesar da vizinhança com a Academia de Polícia.

Árvores arrancadas até a raiz 22du
Numa área próxima à Serrinha, entre a Universidade Federal e o Morro da Cruz, fica a rua Francisco Goulart, que também foi transformada pela explosão imobiliária da Trindade. Ali, assim como nas cercanias, diz o comerciante Paulo Gonzáles, as casas foram substituídas por prédios, uma pequena floresta que havia num aclive próximo foi derrubada e o aparecimento de muitos saguis e formigas gigantes denuncia o impacto ambiental da ocupação desordenada.
De 2005 para cá, istrando seu ponto comercial, Gonzáles testemunhou “um crescimento violento” e a troca das casas térreas por edifícios, multiplicando as opções de aluguel para famílias e estudantes da UFSC. Há poucas semanas, no final da rua, várias árvores de grande porte foram arrancadas por conta de um projeto imobiliário em curso. “Quatro caminhões levaram as toras e as máquinas transformaram troncos e galhos em serragem”, conta ele. “Tiraram até as raízes com o maquinário”.
Pelo morro, do Centro até a freguesia 331x6n
No artigo acadêmico “Memória do bairro Trindade em Florianópolis”, o professor André Fabiano Voigt diz que esta parte da Ilha começou a ser ocupada após a chegada das primeiras famílias de imigrantes em meados do século 18. O brigadeiro José da Silva Paes, governador da capitania, mandou abrir um caminho da área central da cidade do Desterro “para uma grande Lagoa que há no Centro desta Ilha” (Lagoa da Conceição), de modo a acomodar grupos de açorianos e madeirenses. O caminho atravessava o morro do Antão (da Cruz) e ava pelos atuais bairros da Trindade e Córrego Grande. A região era conhecida como “Atrás do morro” e continuava muito afastada e desabitada.
Em antigos livros de batismo encontram-se registros da presença de famílias de açorianos na Trindade antes de 1753. No entanto, só 100 anos depois, em 1853, é que a comunidade foi desmembrada da paróquia da capital, ando-se a chamar de freguesia da Santíssima Trindade. Ela fazia limite com a freguesia da Lagoa.
Em 1855, com 1.811 habitantes, a freguesia era a segunda menor da Capital. No livro “Santa Catarina – a Ilha”, de 1900, Virgílio Várzea falou desse caminho, que definia como “a agem mais curta entre a capital e a freguesia da Trindade”. O trajeto começava na rua Fernando Machado (antiga rua do Vigário), ava pela rua da Tronqueira (atual General Bittencourt) e terminava num dos extremos da estrada da Carvoeira. Embora sem muita precisão, sabe-se que o caminho cruzava a atual comunidade do Mont Serrat, alcançava a Caieira do Saco dos Limões e descia pela Serrinha.

Virgílio Várzea e os quitutes da festa 363673
Em 1857, o jornal Argos já fazia referência à Festa da Santíssima Trindade, num tom depreciativo, falando da precariedade dos meios e da pobreza de adornos do altar, entre outras carências. Já Virgílio Várzea louvava o grande movimento e a afluência de vendedores de todos os tipos de quitutes, em tendas e tabuleiros que atraíam a atenção de pessoas de várias partes da Capital.
Depois, já com o nome de Festa da Laranja, o evento atraía milhares de pessoas da Ilha e do Continente, até enfrentar problemas de segurança e perder a importância, especialmente a partir do ano 2000.
Hoje, a Trindade tem uma vida noturna movimentada e conta com o Teatro, a concha acústica e o Centro de Eventos da UFSC para oferecer opções de cultura aos moradores e estudantes. Tem ainda pista de skate, o Curiódromo (para exposições e torneios de canto de curiós), um grande shopping center e muitos cafés e restaurantes.