‘Barreira silenciosa’: turma com 10 formandos negros na UFSC sente falta de representatividade 4b4w5i

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Os formandos negros do curso de psicologia revelam os desafios que enfrentaram na UFSC e como a união foi uma forma de resistência durante a graduação

A conquista de um diploma universitário é sempre uma grande vitória. Para a turma do curso de psicologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em especial, a formatura foi ainda mais simbólica. Os dez formandos negros que receberam o canudo no dia 18 de abril revelam como a união deles foi importante durante a jornada da graduação.

Formatura do curso de Psicologia contou com dez formandos negrosTurma com dez formandos negros revela que sua união foi uma forma de resistência durante a graduação em psicologia – Foto: Karime Limeira

“Não é à toa que a gente está se formando juntos, porque a gente vai se aquilombando”, reconhece a formanda Mariana Milan, de 24 anos.

Os colegas encontraram forças uns nos outros para enfrentar o racismo e superar as adversidades dos estudos.

Os alunos afirmam que o curso de psicologia costuma ter em torno de dois formandos negros por semestre, por isso a turma se destacou na cerimônia que ocorreu no Centro de Eventos da UFSC, em Florianópolis.

Mais de uma década após a criação da Lei de Cotas, os estudantes ainda constatam a falta de representatividade negra no ensino superior. O Departamento de Psicologia tem apenas uma professora negra, que entrou na UFSC em 2019.

“Não tem representatividade no curso, nem de estudantes — porque somos poucos —, e nem de corpo docente”, afirma Leticia Duarte, de 28 anos.

Os alunos notaram uma evolução no currículo do curso, que ou a incluir intelectuais negros - Beatriz Rohde/ND
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Os alunos notaram uma evolução no currículo do curso, que ou a incluir intelectuais negros - Beatriz Rohde/ND
Formandos do curso de psicologia sentem falta de representatividade negra - Beatriz Rohde/ND
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Formandos do curso de psicologia sentem falta de representatividade negra - Beatriz Rohde/ND
Os formandos Caio Nex e Helena Lívia de Souza são os primeiros de suas famílias a conquistar um diploma universitário - Beatriz Rohde/ND
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Os formandos Caio Nex e Helena Lívia de Souza são os primeiros de suas famílias a conquistar um diploma universitário - Beatriz Rohde/ND
A UFSC começou a reserva de vagas em 2008, quatro anos antes da criação da Lei de Cotas pelo governo federal - Beatriz Rohde/ND
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A UFSC começou a reserva de vagas em 2008, quatro anos antes da criação da Lei de Cotas pelo governo federal - Beatriz Rohde/ND
Turma com dez formandos negros é ponto fora da curva no curso de Psicologia - Beatriz Rohde/ND
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Turma com dez formandos negros é ponto fora da curva no curso de Psicologia - Beatriz Rohde/ND
A formatura do curso de Psicologia foi realizada no Centro de Eventos da UFSC em 18 de abril - Beatriz Rohde/ND
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A formatura do curso de Psicologia foi realizada no Centro de Eventos da UFSC em 18 de abril - Beatriz Rohde/ND
Em 2021, as pessoas negras representavam 14,1% dos formados pela UFSC no campus de Florianópolis - Beatriz Rohde/ND
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Em 2021, as pessoas negras representavam 14,1% dos formados pela UFSC no campus de Florianópolis - Beatriz Rohde/ND
Os estudantes apontam a importância da formação de mais profissionais negros na área da Psicologia - Beatriz Rohde/ND
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Os estudantes apontam a importância da formação de mais profissionais negros na área da Psicologia - Beatriz Rohde/ND
Os alunos criaram em 2019 o Coletivo Orí de Psicologia Anti-Racista - Beatriz Rohde/ND
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Os alunos criaram em 2019 o Coletivo Orí de Psicologia Anti-Racista - Beatriz Rohde/ND

Formandos negros revelam os desafios da graduação 2g5v3

Os estudantes negros, em sua maioria egressos de escola pública, apontam a desigualdade do ensino logo na largada.

“A gente já parte de um lugar diferente para ar a universidade, que é pensada para estudantes brancos desde o vestibular até a cultura acadêmica aqui dentro”, afirma Leticia Lima, 26 anos.

Quem pensa que o desafio acaba com a aprovação no vestibular está enganado. A permanência na universidade é uma batalha constante.

“Às vezes acho que é mais difícil permanecer do que entrar, porque a gente tem que dar conta de muita coisa. A maioria aqui teve que trabalhar enquanto estudava e a gente perde um monte de oportunidade dentro da UFSC”, nota Helena Lívia de Souza, formanda de 24 anos.

Formandos negros se uniram como forma de resistência na universidadeDa esquerda para a direita: os formandos Caio Nex, Letícia Duarte, Letícia Lima, Leoni Rita Vitória, Mariana Milan e Helena Lívia de Souza – Foto: Beatriz Rohde/ND

As bolsas de extensão no valor de R$ 420,00 não bastam para sustentar os alunos, que buscam estágios fora da universidade.

Conciliar o trabalho com os estudos não é tarefa simples e pode afetar o desempenho acadêmico, sobretudo no curso de psicologia, cujo período é integral.

Ainda há pouca flexibilidade por parte dos professores, que desconhecem a realidade dos estudantes. “Não tem nenhuma brecha pra gente”, afirma Leticia Duarte.

“É muito difícil a gente acompanhar por conta das nossas rotinas de trabalho. Eles te reprovam porque tu teve uma falta a mais, então às vezes tem a nota, tem tudo para ar, mas eles vão te reprovar pela tua presença. Só que eles não sabem o que está ando no dia a dia”, relata a estudante.

A PRAE (Pró-Reitoria de Permanência e Assuntos Estudantis) oferece diversos programas de assistência: Auxílio Moradia, Bolsa Estudantil UFSC, Moradia Estudantil, Auxílio Creche, Auxílio-Internet, Auxílio Emergencial de Permanência.

A pró-reitoria garante também a isenção do pagamento do Restaurante Universitário e a Bolsa PAIQ (Programa de Assistência Estudantil para Estudantes Indígenas e Quilombolas).

Os alunos contemplados pela Lei de Cotas possuem prioridade no recebimento dos auxílios pecuniários. Em 2023, o Departamento de Permanência Estudantil desembolsou um total de R$ 23.613.425,90 nos pagamentos dos programas, que beneficiaram 3.087 estudantes.

O que é exigido na faculdade, de acordo com os formandos da psicologia, muitas vezes espelha o capital cultural dos alunos brancos. Uma linguagem formal nas avaliações é esperada logo nas primeiras fases, sem a devida orientação.

“A gente não chega com esse repertório. Nem todo mundo teve a chance de estudar em uma escola boa que realmente ensinasse a escrita acadêmica”, comenta Leticia.

Cerimônia de formatura do curso de Psicologia da UFSCOs alunos notaram uma evolução no currículo do curso, que ou a incluir intelectuais negros – Foto: Beatriz Rohde/ND

A sensação de incapacidade, já no início do curso, afeta a autoestima dos estudantes que podem se sentir inferiores aos colegas.

“Eu lembro que no começo eu me comparava bastante em relação a isso porque eu via que meus colegas brancos tinham mais facilidade de escrita e eu tinha muita dificuldade”, recorda Helena.

As referências dos alunos negros, por outro lado, não são valorizadas. Para o estudante Caio Nex, a linguagem imposta no ambiente acadêmico não reflete a realidade dos jovens.

“Eu acho que não é questão de escrever, é uma questão de comunicação. A gente tem um tipo de comunicação que não é tão abrangente. Viemos de periferia e temos outras convivências, mas a inteligência está ali, o conteúdo está ali. A forma de se expressar pode não ser a mais usual, mas o conceito está ali”, defende.

A formatura do curso de Psicologia foi realizada no Centro de Eventos da UFSC em 18 de abrilA formatura do curso de psicologia foi realizada no Centro de Eventos da UFSC em 18 de abril – Foto: Beatriz Rohde/ND

A turma percebe que a maneira como os estudantes negros se expressam é invalidada. Em alguns casos que abordaram a temática racial em trabalhos, chegaram a receber nota baixa por desviar do assunto proposto pelo professor.

“Às vezes eles ignoram toda a reflexão que tu fez com conteúdo porque o teu corpo e o que tu está dizendo ali não está de acordo com o que eles aprenderam, com o que eles ensinam. Muitos não estão abertos para novas referências”, declara Leoni Rita Vitória, formanda de 36 anos.

Mariana completa: “Tudo isso enquanto os alunos brancos trazem as perspectivas que são mais tradicionais e antigas e são validados no conhecimento. Quando a gente fala fica um silêncio. Isso também afeta na permanência e no quanto a gente valoriza nosso conhecimento”.

Apesar dos obstáculos, os formandos constataram uma grande evolução em sua produção acadêmica ao longo da graduação. Eles notaram também como sua presença fez o currículo do curso de psicologia evoluir e se diversificar.

Dez formandos negros receberam o diploma de graduação em Psicologia neste semestre na UFSCUma “barreira silenciosa” surgiu entre os estudantes brancos e negros logo no primeiro dia de aula, em 2018, segundo os formandos – Foto: Beatriz Rohde/ND

Algumas disciplinas aram a incluir o estudo de intelectuais negros, como Lélia Gonzalez, Frantz Fanon e Cida Bento. Os docentes se deram conta de que estavam atrasados nos estudos raciais e procuraram se informar.

“A gente percebe desde a nossa entrada até aqui um avanço nas grades curriculares. A gente consegue ver a presença de mais autores negros nesses currículos, mas ainda sinto também que os professores ainda não estão tão apropriados do assunto”, opina Leticia Lima.

Uma barreira silenciosa 95t4x

Leoni Rita Vitória aponta o estranhamento por parte dos alunos brancos ao dividir a sala de aula com alunos negros, possivelmente porque só tiveram contato com outras pessoas brancas durante a maior parte da vida.

“Desde o jardim de infância a pessoa convive com pessoas brancas. E aí as pessoas brancas estão em todos os lugares e as pessoas negras estão sempre em lugares subalternos”, explica.

“Quando chega na universidade, existe essa tensão que é social e racial. Eles às vezes não conseguem lidar com isso porque a gente não está naquele lugar de sempre, que é o lugar de empregado deles”, completa a formanda.

Formandos do curso de Psicologia revelam os desafios que enfrentaram na graduaçãoOs alunos Caio Nex e Helena Lívia de Souza são os primeiros de suas famílias a conquistar um diploma universitário – Foto: Beatriz Rohde/ND

Leoni lembra que logo no primeiro dia de aula, em 2018, a disposição dos calouros entre as cadeiras da sala revelou uma segregação inquietante.

De um lado da classe, as pessoas negras, indígenas e com deficiência. Do outro, os jovens brancos de classe média e classe média alta.

“É uma barreira silenciosa”, constata o colega Caio.

Mariana Milan explica que a dificuldade inicial com a escrita acadêmica e a necessidade de conciliar o trabalho com os estudos pode levar à exclusão dos alunos negros nos trabalhos em grupo.

“Tu fica estereotipado porque tu é uma pessoa que não ajuda no trabalho, ou que não escreve, por conta de ter menos tempo porque trabalha. Então isso vai expulsando a gente e sempre vai ficando aquela pessoa negra na sala que não tem dupla ou grupo para fazer trabalho”, lamenta a jovem.

“Mesmo a gente tendo entrado em fases diferentes, a gente está se formando junto porque é uma forma de resistência. A gente só está conseguindo se formar porque a gente realmente se uniu para ir contra essas tensões que querem nos expulsar daqui”, conclui Mariana.

Solenidade de formatura no Centro de Eventos da UFSCOs formandos consideram que, apesar das ações afirmativas, a representatividade negra no ensino superior ainda é baixa – Foto: Beatriz Rohde/ND

Para combater a discriminação, os estudantes criaram em 2019 o Coletivo Orí de Psicologia Anti-Racista. O grupo acolhe os estudantes negros e fortalece a resistência na UFSC.

“É um sonho entrar na universidade e tu não imagina que pode se tornar um pesadelo por conta de todas essas violências. Então o coletivo se tornou esse espaço de acolhimento e de proteção para a gente se avisar e se acolher”, esclarece Mariana.

A reportagem entrou em contato com o curso de psicologia da UFSC para entender como o currículo abrange a diversidade cultural, mas, até a publicação desta matéria, não houve retorno. O espaço segue aberto.

Cotas na UFSC 4kg6g

Uma das instituições pioneiras no Brasil, a UFSC implantou o primeiro sistema de cotas em 2008. A Lei nº 12.711, conhecida como Lei de Cotas, só seria sancionada em 2012.

A política instituiu a reserva de 50% das vagas em cursos de graduação para alunos de escola pública, pessoas negras, indígenas e com deficiência.

Dados da universidade apontam que em 2008, quando começou a reserva de vagas, 170 do total de 2604 alunos formados eram pretos e pardos, o que representa cerca de 6,5%.

A política de ações afirmativas promoveu um crescimento no índice. Entre os 2599 estudantes formados pela UFSC no ano de 2023, 442 alunos eram pretos e pardos, sendo em torno de 17% do total.

Segundo o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2022, a população negra representa 23,2% dos habitantes de Santa Catarina.

Enquanto 19,2% dos catarinenses se autodeclararam pardos, somente 4,07% se autodeclararam pretos no levantamento. O percentual é o menor do Brasil, que tem em média 10,2% de cidadãos pretos.

De acordo com dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) em 2021, somente o Centro de Desportos da UFSC formou mais pessoas negras do que a porcentagem dessa população em Santa Catarina, que era em torno de 18%.

UFSC começou a implementar o sistema de cotas para negros em 2008Turma com dez formandos negros é ponto fora da curva no curso de psicologia – Foto: Beatriz Rohde/ND

A turma de psicologia é um símbolo do impacto das cotas, não apenas para os jovens negros como também para as instituições. A diversidade se mostra essencial no avanço do ensino superior brasileiro.

“A partir do momento que a gente entrou no curso de psicologia, a gente começou a ter uma percepção de questões que antes não eram percebidas. Então a entrada de pessoas diversas, sejam negras, indígenas e pessoas trans, traz essas tensões nas salas de aulas e acaba transformando também os próprios currículos dos cursos”, considera Leticia Lima.

A formação de cada vez mais profissionais negros nas universidades pode contribuir com todas as áreas de trabalho, em especial no domínio da psicologia.

Os alunos criaram em 2019 o Coletivo Orí de Psicologia Anti-RacistaOs alunos criaram em 2019 o Coletivo Orí de Psicologia Anti-Racista – Foto: Beatriz Rohde/ND

“Ter essa diversidade de corpos no atendimento é muito importante, porque é um momento de vulnerabilidade e tu tem que se sentir à vontade para conseguir falar e ser tratado da melhor maneira”, enfatiza Mariana.

Pensando na saúde da população negra, Leoni define que é necessário formar “não só profissionais negros, mas formar profissionais brancos racializados que têm esse letramento”.

A formatura dos alunos negros também serve de referência para as gerações futuras. Caio Nex e Helena Lívia de Souza, por exemplo, são os primeiros de suas famílias a conquistar um diploma universitário.

“Isso é muito importante, eu vejo todo mundo muito feliz por mim. Não só os meus irmãos, mas a família como um todo. Eu tenho outra prima que quer entrar na faculdade e fazer psicologia, então ela veio e me procurou para saber como é”, conta Helena.

Formatura do curso de Psicologia é símbolo da importância das cotas raciais Os alunos negros se sentem invalidados no curso de psicologia e o racismo afeta sua autoestima intelectual – Foto: Beatriz Rohde/ND

A importância da política de cotas, porém, não é unanimidade no Brasil. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em abril deste ano revelou que 41% dos entrevistados são contra o critério racial para a reserva de vagas nas universidades e 15% são contra a reserva de vagas como um todo.

Os estudantes consideram que, por mais que as ações afirmativas sejam fundamentais, a presença negra nas universidades ainda é pouca.

Garantir o ingresso dos alunos não basta, é preciso investir na sua permanência para que a turma com dez formandos negros não seja mais um ponto fora da curva.

“A gente ainda está muito longe. A gente a mas não permanece, demora mais para terminar, tem gente que não consegue nem terminar e tem que fazer outro vestibular. Tudo isso já mostra que a ação afirmativa é boa, mas não é o suficiente para cobrir o déficit social histórico que a gente tem”, reflete Leoni.