O tratamento bem-sucedido de um cão com lúpus, atendido pela Clínica Veterinária Escola da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em Curitibanos, virou referência internacional. A cachorrinha Luna começou a ser medicada com óleo de cannabis há quase dois anos e apresentou melhoras surpreendentes.

O relato do caso foi publicado em fevereiro, na plataforma da Frontiers, uma renomada editora internacional de revistas científicas.
O artigo teve orientação dos professores da UFSC Erik Amazonas e Marcy Lancia Pereira, que acompanharam de perto o desenvolvimento da paciente Luna.
“A importância desse caso nessa revista, tão conceituada dentro da medicina veterinária, é que é um trabalho nacional, feito aqui dentro da UFSC”, explicou a professora Marcy.
“É um trabalho pioneiro. A gente não tem relatos de tratamento de lúpus com cannabis, então esse é o primeiro em cão”, garante.
A pet, de 5 anos, é a fiel companheira da tutora Clarice Antunes, engenheira agrônoma em Curitibanos.
Luna recebeu o diagnóstico de LED (lúpus eritematoso discóide) em meados de 2021. A doença autoimune é incurável e o corpo ataca o próprio organismo, causando lesões na pele dos cães.

“Quando chegou o diagnóstico e nos foi explicado sobre a doença, tínhamos muito medo do que poderia acontecer com a nossa companheirinha”, lembra Clarice.
A engenheira procurou a Clínica Veterinária da UFSC, onde foi recebida pela médica e professora Marcy Pereira.
Antes e depois do tratamento com cannabis 5sm1q
Luna apresentava lesões graves na pele e danos hepáticos que preocupavam a família. No primeiro momento, a cachorra iniciou o tratamento convencional à base de corticoides, mas não respondeu bem à medicação.
O uso prolongado de imunossupressores, comumente prescritos em casos de lúpus, pode causar danos sérios ao fígado e rim dos animais.
Luna ganhou mais de 10 kg em sete meses e sua qualidade de vida diminuiu drasticamente.
“Tudo irritava muito ela, não brincava com o outro cão que temos”, observou a responsável.

“Depois que paramos com o tratamento convencional e iniciamos o tratamento da cannabis e a utilização de uma pomada, ela melhorou totalmente. Diminuiu o peso, voltou a brincar, a ter uma vida normal de cachorro”, relata Clarice.
A engenheira já conhecia um pouco sobre o uso de cannabis medicinal em pets e comentou com a professora Marcy. Diante da tentativa fracassada com os imunossupressores, a médica-veterinária decidiu dar uma chance ao tratamento alternativo.
“Isso mostrou realmente que foi mais efetivo do que o tratamento convencional, não só que pode ser usado. A gente acompanha a paciente há um tempo e, até o momento, não tem tido efeitos adversos, coisa que acontece com as medicações que a gente utiliza para essa doença”, comentou a veterinária.

Erik e Marcy começaram a terapia à base de canabinoides em maio de 2022. A dose de Luna foi ajustada gradualmente, de acordo com sua reação, até chegar à dose mínima eficaz. Por se tratar de uma doença incurável, a medicação segue até hoje.
A substância não reduz a resposta imune do organismo a ponto de bloqueá-la.
“Em vez de fazer uma supressão do sistema imunológico, a cannabis faz uma modulação, o que faz com que você tenha o efeito anti-inflamatório, que não causa outros problemas, como os imunossupressores”, esclarece Erik Amazonas.
“É um caso bem interessante porque mostra o caráter colaborativo das associações de cannabis”, comenta o pesquisador.
O óleo foi fornecido a Clarice pela Associação Alternativa de Apoio à Cannabis Medicinal do Brasil, uma organização sem fins lucrativos.

Logo no início do tratamento, a pet apresentou avanços significativos. Luna perdeu 9 kg em um mês e as lesões cutâneas se atenuaram. A tutora não esperava que hoje, quase dois anos depois, a cachorra estaria tão bem.
“A evolução da doença cessou, a lesão quase não se percebe mais. A Luna se adaptou muito bem ao tratamento, até quando pegamos o frasquinho para dar as gotinhas, ela já fica sentada ou deita, ela é muito querida”, constatou Clarice.
“Ciência na garra” 4q3q2x
Apesar do avanço nas pesquisas, estudar cannabis no Brasil ainda é uma batalha. A professora Marcy Pereira considera a legislação o maior entrave para o desenvolvimento do campo científico.
“Está relacionado a questões ideológicas. Não só para aprovação de legislação pertinente, como também para os próprios tutores que ainda associam isso a uma coisa ruim. Pela falta de conhecimento deles, acham que estariam drogando os animais”, analisa a médica.

A Lei nº 11.343 de 2006, conhecida como lei de drogas, prevê que a União autorize o cultivo das plantas para fins médicos ou de pesquisa. Contudo, a permissão é difícil de conseguir.
“Não tem como fazer ciência. Literalmente, a gente faz ciência na garra”, declara o professor Erik Amazonas.
O pesquisador tentou por quatro anos, até que solicitou um habeas corpus preventivo.
“Eu tive que correr atrás de comprovação de que meu pedido é válido, porque a lei está lá, mas não estavam permitindo. Por isso eu tenho um habeas corpus. Mas se um professor da UFSC em Florianópolis plantar, ele vai preso”, explica.
Assim que conseguiu a autorização judicial para o cultivo de cannabis, em novembro de 2022, Erik fundou na universidade o projeto Podican (Polo de Desenvolvimento e Inovação em Cannabis). Desde então, já foram realizadas cinco colheitas da planta.

“A ideia do polo é servir como um habitat de inovação e desenvolvimento para a gente criar parques tecnológicos que possam de fato manipular a planta e desenvolver uma nova cadeia produtiva, ou integrar essa planta na cadeia produtiva que nós temos no país”, descreve Erik.
Além dos fins terapêuticos, a cannabis pode ser útil para diversos setores industriais. A erva serve de alternativa ecológica para a produção de madeira, papel e plástico. O Podican busca levar esse conhecimento às empresas e especialistas de cada área da indústria.
A UFSC é a primeira instituição de ensino superior do Brasil a obter uma medida judicial que autoriza a produção de todos os insumos para a pesquisa da cannabis na medicina veterinária.

A universidade também foi a primeira do país a incluir o estudo da cannabis e do sistema endocanabinóide em cursos da área da saúde. Erik Amazonas ministra a disciplina de Endocanabiologia desde 2018, no campus de Curitibanos.
O sistema endocanabinóide diz respeito aos receptores e compostos da cannabis encontrados naturalmente no corpo humano e animal.
O futuro da cannabis p2u3o
A publicação do artigo sobre o caso de Luna na revista Frontiers abre portas para novas descobertas. A publicação de grande alcance e prestígio no meio científico torna as pesquisas realizadas na UFSC uma referência global.
Os pesquisadores não têm conhecimento de outros relatos no mundo sobre o uso de óleo de cannabis para tratamento de lúpus em animais. A cachorrinha Luna foi, portanto, uma pioneira.

“A gente fala muito que uma pesquisa que você faz e não publica, só engaveta, não serviu para nada. Ela precisa servir para a comunidade científica se debruçar sobre ela e avançar nesse tema”, opina o professor Erik.
Ele defende que o Brasil já é referência nas pesquisas em terapia com cannabis, tanto na medicina humana quanto veterinária.
A ciência brasileira ganhou o respeito de atores globais como Estados Unidos, União Europeia e América Latina.
“Mesmo não sendo legalizado, a gente tem uma conexão muito forte internacional. O Brasil tem talvez uma das maiores redes de comunicação de médicos e veterinários para atuação com cannabis no mundo”, afirma.

Apesar dos obstáculos legais, o Podican segue cultivando e estudando a planta no Centro de Ciências Rurais da UFSC.
Os docentes e estudantes se empenham em criar um ecossistema capaz de gerar desenvolvimento tecnológico para Santa Catarina e para o Brasil.
A médica-veterinária Marcy Pereira acredita que o trabalho desenvolvido na universidade pode inspirar novos experimentos na área: “Com certeza esse resultado vai influenciar pesquisas, primeiro pelo alcance da revista, pelo impacto que ela tem”.
“É uma revista de muita confiança no meio científico e vai encorajar quem está iniciando com cannabis. Isso vai ser levado de uma forma mais natural para aqueles que ainda têm resistência a essa terapia”, conclui a pesquisadora.