“Vale a pena lutar pela verdade”, diz Derlei de Luca, ex-presa política 433v1t

Catarinense de Içara relata sua vida, a militância, prisões, tortura, exílio e o abandono do filho

Além de ser presa em Ibiúna juntos com os outros estudantes catarinenses que iriam participar do Congresso da UNE em 1968, Derlei Catarina De Luca é uma das principais fontes de informação e memória sobre o movimento estudantil e a resistência contra a ditadura em Santa Catarina. Após a lei anistia em 1979 e de retornar do exílio em Cuba, Derlei participou das buscas pelos catarinenses mortos e desaparecidos políticos.

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Neste relato exclusivo ao ND, ela relembra a sua militância na AP (Ação Popular), a prisão pela Oban (Operação Bandeirante), as sessões de tortura e o caso mais dolorido na sua trajetória de sua participação política: o abandono forçado do seu filho no Paraná para tentar evitar nova prisão e torturas pela repressão antes de ir para o exílio em Cuba.

A infância em Içara e a militância na JEC (Juventude Estudantil Católica) e na AP (Ação Popular)

Eu nasci em Içara, zona de mina de carvão. Em toda a minha infância acompanhei prisões de mineiros e greves. No dia do golpe estava na casa dos meus pais em Içara. Era estudante secundarista. Noventa pessoas foram presos na região. Organizamos um grupo para levar comida para eles. Foram levados para um prédio do Conselho Nacional do Carvão, em Criciúma, onde hoje é a Fundação Cultural. Fomos levar comida para as famílias dos presos. Quem organizou e forneceu tudo foi meu tio que era prefeito de Içara, Ascedino Pavei. Ele era de direita, mas não era um fascista. E numa cidade pequena todo mundo se conhece. Eu e mais duas meninas fomos entregar os alimentos nas casas dos mineiros presos.

Logo em seguida do golpe, a gente já ficou sabendo. Na cidade, todo mundo ouvia rádio Havana. Meu pai era Getulista e apoiava João Goulart, que na região era muito amado. Ano ado, o João Vicente, filho o ex-presidente, esteve lá e parou a cidade. Todo mundo queria bater foto com ele. Lá era normal, todo mundo apoiava o Jango na cidade. Já tinha participado da campanha da Legalidade. Para mim era uma coisa muito natural. E fazer parte da ação católica também porque todos participavas e minha família é católica. Quando o pessoal da JEC (Juventude Estudantil Católica) foi para a AP (Ação Popular) eu também fui. Era normal ir. Fomos para a AP porque a Igreja restringia a ação política, tinha muita gente de direita e muitos fascistas. A gente não tinha nada com comunista, eles nem gostavam de nós.

Ninguém participou da luta armada na AP. Três pessoas da AP fizeram um atentado em Guararapes, em Pernambuco, e foram expulsos por isso. Não éramos contra a guerra, mas achávamos que era preciso o confronto com apoio da população e não com grupos isolados e guerrilha. Era preciso organizar a guerra nos movimentos de massa. Mas se precisava a gente ajudava os militantes da luta armada. Cansei de dormir em casa de gente do Partidão (PCB) e de ajudar eles em fuga.

[A AP foi um movimento político criado em junho de 1962, a partir de um congresso em Belo Horizonte e resultado da atuação dos militantes estudantis da Juventude Universitária Católica (JUC) e de outras agremiações da Igreja Católica. Após o golpe militar, a organização teve seus principais quadros jogados na clandestinidade ou exilados. A AP deslocou militantes para as fábricas e para o meio rural. E fez experiências em meios populares como o ABC paulista, a Zona Canavieira em Pernambuco, a Região Cacaueira da Bahia, a área de Pariconha e Água Branca, em Alagoas, e no Vale do Pindaré, no Maranhão. A AP foi acusada do atentado ocorrido em 25 de julho de 1966 no Aeroporto dos Guararapes em Recife (PE) que ocasionou na morte de duas pessoas e 15 feridos. Os mortos no atentado na época foram o Secretário de governo de Pernambuco na época, Edson Régis de Carvalho, e o almirante da reserva Nelson Gomes Fernandes.]

Daniel Queiroz/ND

Dirlei de Luca tornou-se uma das maiores fontes de informações sobre o período em Santa Catarina

Clandestinidade

Estava clandestina desde 13 de dezembro de 1969. Foi quando a polícia entrou na casa em que morava na avenida Hercílio Luz. Eles entraram pela porte e eu fugi pela janela. Dormi na rua nesta noite. O companheiro Valmir Martins arrumou uma casa para eu ficar. Não sei onde é, mas era bem no interior da Ilha na casa de um cabo da Polícia Militar. Quem me levou de carro foi Heitor Bitencourt. Fiquei neste esconderijo até a véspera do Natal. Ai fui com um colega da AP do Paraná para Curitiba. Fizemos uma série de reuniões lá. E a AP definiu a política de integração na produção. Os militantes tinham que ar pelas fábricas e saber como funcionava a vida operária, uma concepção bem religiosa. Trabalhei numa tecelagem durante dois meses.

Depois disso fui deslocada para o trabalho interno da organização em São Paulo. A partir desse momento era responsável pelos contatos entre os dirigentes na clandestinidade. Eram publicados anúncios nos jornais nacionais e determinadas pessoas liam os anúncios. Eu decodificava os anúncios e os códigos para promover os encontros da AP. Por isso, quando fui presa eu não podia falar. Eles podiam me matavam, mas eu não podia entregar os códigos.  

A prisão pela Oban (Operação Bandeirantes) em São Paulo

A grande prisão foi em São Paulo. Em novembro de 1969. Estava na rua Vergueiro. Tinha acabado de encontrar um companheiro da AP. Na época tinham muitos cartazes de procurados que participam dos assaltos a banco. Eles não acreditavam na minha identidade verdadeira. Fui confundida com Maria Aparecida Costa, que era da ALN (Ação Libertadora Nacional). O rapaz que estava comigo ia me entregar a minha nova identidade e eu aria para ele a minha verdadeira porque a gente não podia andar com as duas. Eles não prenderam o rapaz, mas me algemaram. Começaram a me bater e me levaram para a Operação Bandeirantes. Me quebraram toda, como seu fosse uma pessoa procurada dos cartazes. 

Isso foi 19 dias depois da morte do Carlos Marighela. Imagina o que era a repressão naquele momento. Me deram choques elétricos e me colocaram no pau de arara. Eu não sabia responder nada do que eles me perguntavam. Ai eu entrei em estado de coma. Ai o capitão Dalmo (Dalmo Cyrilo) me levou para o hospital. Não porque ele era bonzinho. É que eu fui torturada pelos capitães Maurício Lopes Lima, Homero Cezar Machado, e Bernoni Abernaz, todos da infantaria do Exército. Quando chegou no turno do Dalmo, ele não queria assumir minha morte, porque ele não tinha me batido e por isso me mandou para o hospital.

[Em 30 de novembro de 2011, o jornal Folha de S.Paulo publicou reportagem em que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo) decidiu que os militares acusados de torturar presos políticos na Oban (Operação Bandeirante) durante a ditadura não podiam mais ser condenados porque seus supostos crimes já prescreveram. A decisão beneficiou quatro ex-agentes do regime. Entre eles o tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima, que foi apontado como torturador pela presidente Dilma Rousseff em depoimento à Justiça Militar, em 1970 e que, segundo Derlei de Luca, também foi um dos seus torturadores. A decisão também beneficiou os outros militares citados por Derlei como Homero César Machado e Bernoni Albernaz]

[Em 22 de outubro de 2013, Comissão Estadual da Verdade de São Paulo tratou do caso da madre Maurina Borges da Silveira, torturada e estuprada dentro da Oban. Segundo depoimento da militante comunista Áurea Morete, a irmã sofria diversos assédios por parte do militares e que em uma madrugada, um militar retirou a madre da cela. Ao retornar, “ela estava com as roupas descompostas e chorando desesperada”. Segundo informações, o capitão Dalmo Muniz Cyrilo estuprou a madre naquele dia.]

Eu acordei nos hospital dias depois e vi que tinha um soldado com uma metralhadora na porta do quarto e outro no pé da minha cama com um revólver. Me levaram de novo para Operação Bandeirante na Rua Tutóia. Me torturaram de novo. Choque e cadeira do dragão. Ai o delegado Gaeta (Lourival Gaeta, conhecido como Mangabeira), que tinham mais prática de interrogatório achou o processo de Ibiúna e me identificou. Chegou lá e disse que eu era Derlei de Luca. Minha sorte foi o capitão Dalmo. O pessoal diz que tenho a síndrome de Estocolmo quando falo do capitão. Mas para mim ele não é igual aos outros porque não me torturou, se é a síndrome eu não sei. E sei também que ele torturou outros presos políticos. Eu fiquei presa de novembro de 1969 até março ou começo de abril de 1970. Eles não podiam me soltar porque eu estava muito machucada.

Divulgação/ND

Dirlei de Luca, em foto da época

[Em 27 de março de 2013, Comissão Estadual da Verdade de São Paulo debateu a violência cometida pela repressão contra as mulheres. A ex-militante do PCdoB e ex-presa política, Maria Amélia de Almeida Teles relatou neste dia foi amarrada na cadeira do dragão quando o torturador Lourival Gaeta, o “Mangabeira” começou a masturbar-se na sua frente. Ao gozar, jogou o sêmem em cima de seu corpo. “Não gosto de falar sobre isso, mas sei da importância de tratar desse assunto, da desigualdade entre homens e mulheres na hora da tortura. Eles usaram da desigualdade para nos torturar mais”, disse sob forte emoção durante a audiência, Maria Amélia.]

Eu vim para Florianópolis e quem me ajudou foi o Dom Afonso Niehues, arcebispo de Florianópolis. Fiquei no seminário de Antônio Carlos. O diretor era o padre Vitor Schlickmann, que hoje é bispo auxiliar de Florianópolis. Ai eu fiquei quase dois meses lá, fui acompanhada por médicos. Tinha crises de epilepsia devido aos choques. Até hoje eu não gravo números de telefone. Tive crises de pânico e não conseguia dormir com a luz apagada. Tenho o mesmo sonho recorrente. Um rolo compressor que vai ar por cima de mim, uma superfície cinzenta. Eu acordo até hoje sobressaltada com este sonho. 

O abandono forçado do filho

Depois de me recuperar em Santa Catarina eu fui mandada pela AP para a Bahia. Como porta de entrada do Nordeste, lá se imaginava que a guerra ia começar na zona da Mata Nordestina. E já estavam começando a organizar as bases de apoio. Pessoas deslocadas para localidades sem nenhum tipo de militância, eram médicos, professores e alguns agrônomos para criar essas bases. Não tinham atividade política, mas iam organizar, por exemplo os hospitais móveis, como no Vietnã. Idealismo, mas era a ideia da época. Eu fique até 1972 em Feira de Santana. Lá fiz um outro registro de identidade. Me apresentei no cartório, paguei uma multa de 17 cruzeiros. Saí de lá com o nome de Maria Luiza Vitali. Maria Luiza para não esquecer da minha sobrinha que tem esse nome e Vitali porque era mais branca do que o pessoal do Nordeste.O nome dava um rasgo de ascendência italiana. E em tese eu tinha nascido no Mato Grosso já que tinham muitos gaúchos migraram para lá.

Eu continuei a decifrar os códigos dos anúncios publicados para os pontos de encontros. Acharam que eu tive um bom comportamento, pois não caiu ninguém por minha causa. Não que eu seja melhor do que ninguém. Mas depois que me chamaram pelo nome verdadeiro nunca mais me torturaram. De Feira de Santana eu fui para Londrina. Estava grávida e com um bebê de quatro meses acabei indo para Chile.

Quando estávamos nos preparando para sair caiu o Márcio, um engenheiro, em Porto Alegre. Ele me conhecia pelo nome de Derlei Catarina de Luca. Tinha ficado na minha casa em Londrina. Ele disse que eu morava lá. Eles chegaram procurando pelo meu nome verdadeiro. Eu estava com o documento de Maria Luiza Vitali. Eles chegaram lá e disseram: A senhora sabe que seu marido tem uma amante, uma tal Derlei Catarina de Luca? Eu quase deixei cair a criança no chão. Ai levaram meu marido para explicar quem era Derlei Catarina de Luca. Em seguida deixei o bebê na porta de um hospital em Londrina. O Ministério da Justiça publicou um livro sobre as crianças e tem a história do meu filho. Fui andando até Cambé e acabei no Chile. ei pelo Rio de Janeiro antes, trabalhei como empregada doméstica, até me reencontrar com os integrantes da organização.

[Em maio do ano ado, também na Comissão da Verdade em São Paulo, José Paulo de Luca Ramos, filho de Derlei Catarina de Luca e Nilo César, contou sua história no exílio. No ano em que ficou sem a mãe no Brasil, ele ou por várias famílias e também esteve com a avó. José Paulo relatou ter boas lembranças da vida em Cuba. Embora tenha demorado um ano para chamar Derlei de mãe, ele considera esse período “uma ferida sarada”. Disse também ter orgulho das ações da mãe para tentar melhorar o país.]

O exílio em Cuba

Dois anos e meio depois me reencontrei meu filho em Havana. Eu tinha deixado um bebê e chegou uma criança de três anos andando. Eu imaginava o bebê. Eu e ele fomos para o psiquiatra durante seis anos até voltar ao Brasil. Estudei História e fui muito bem tratada lá. Ele se alfabetizou em espanhol. Ditadura é sempre ruim, se matou um ou vinte. O fundamental é respeitar o ser humano. Apesar de todos os problemas que nós temos, como a corrupção, vale a pena lutar pela democracia. Uma sociedade homogênea não existe. Mas ainda é o melhor sistema. Vale a pena também lutar pela verdade. Quando começamos a lutar pelos corpos dos nossos companheiros mortos e desaparecidos todos diziam que não íamos achar nada.

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