As lembranças do pai, marido, jornalista, esportista e assessor da Chapecoense, Cleberson Silva, continuam vivas diariamente na casa de Sirliane Freitas. Depois de 14 anos de relacionamento e de dois filhos, Sirli ficou viúva e precisou ressignificar a dor da perda. Cinco anos se aram desde a tragédia da Chapecoense e, para ela, “não tem como ar por uma tragédia dessas sem se transformar, sem transformar toda a sua vida e tudo o que você pensava e sabia sobre a morte e a vida.”

Sentadas num banco de um jardim, conversamos durante mais de duas horas sobre os últimos cinco anos. Os pássaros cantavam ao fundo e pareciam gostar de ouvir a transformação pela qual ou a viúva do Cleberson, mas também a jornalista, a fotógrafa apaixonada, e a mãe do Pedro, da Mariana e agora do Francisco.
Quando o marido morreu, em 29 de novembro de 2016, Sirli contou principalmente com a ajuda da família. “Eu havia perdido meu marido, meus filhos perderam o pai, minha sogra mora ao lado e estava sofrendo muito pela perda do filho, então meus pais também vieram e ficaram três meses na minha casa”, lembra.
Com os dois filhos para criar e uma casa para manter, Sirli precisou enfrentar os primeiros desafios: perder o medo de dirigir e voltar ao trabalho rapidamente. Recebeu uma proposta da própria Chapecoense e assumiu o lugar do marido.

“Fiquei dois anos lá, foi muito importante para mim e para meus filhos, porque eu convivia com pessoas que trabalhavam com o Cleber, fui viajar e encontrei pessoas do Brasil todo que conheciam o trabalho dele como assessor da Chapecoense. Foi aí que conheci realmente meu marido profissionalmente, ouvi histórias que conto para meus filhos, e assim pude ficar perto dele de alguma forma”, conta Sirli.
A ressignificação da dor para as crianças 3a6j4s
Depois de dois anos trabalhando no lugar do marido na Chapecoense, Sirli sentiu que precisava voltar a construir sua própria história. Continuou fotógrafa, mas conectou-se mais intensamente com a fotografia artística, e essa conexão mais profunda com o trabalho também auxiliou na ressignificação da perda.
Com o tempo, a jornalista e os filhos iniciaram acompanhamento psicológico para ressignificar a vida. Uma das lembranças mais fortes daqueles momentos está tatuada no braço de Sirli. “Um dia meu filho de 8 anos me viu chorando, me abraçou e me disse: ‘Mãe, você é mais forte do que um elefante, não precisa chorar. Nos abraçamos e nunca esqueci daquilo. Depois tatuei três elefantes no braço: eu, o Pedro e a Mariana”, recorda.

Desde aquele momento, falam abertamente com as crianças sobre o Cleberson e respondem as dúvidas que surgem com o ar do tempo. “Também comemoramos o aniversário dele, geralmente na piscina, onde ele mais gostava. E incentivo amigos e conhecidos a fazerem o mesmo, desde que recordem de lembranças positivas, que façam bem para as crianças. A partir de todas essas memórias, costumo dizer ‘ele está dentro de você’ para meus filhos”, conta Sirli.
Autora do livro digital “Educando filhos seguros: descubra como a sua infância reflete no comportamento dos seus filhos”, a psicóloga Deisy Parnof baseia-se nos autores que defendem que tudo que acontece na infância não permanece na infância, mas sim acompanha o ser humano pela vida toda. Desta forma, “o luto não é um obstáculo que deve ser quebrado, mas sim, acolhido para ser vivido e um significado construído”, frisa a psicóloga.
E este é o papel dos pais ou responsáveis pelas crianças que também am pelo processo de perda ou de luto, como no exemplo de Sirli e dos filhos. “Fornecer acolhimento através de um espaço onde a criança possa falar sobre suas dúvidas, expressar seus sentimentos, onde não seja julgada, receba informação sobre a ausência daquela pessoa — no caso da tragédia da Chapecoense — ou também de um objeto, animal ou lugar”, afirma Deisy.

Com o ar dos meses ou anos, vai ocorrendo a elaboração do luto. “É um processo que ocorre quando o enlutado consegue começar a voltar às suas atividades, consegue falar sobre as lembranças de seu ente querido sem chorar tanto, consegue fazer movimentos em memória à pessoa que morreu. Consegue se olhar novamente para recomeçar”, afirma Deisy.
Após ar por uma série de julgamentos por ter driblado o luto e tentado recomeçar a vida, Sirli começa a sonhar de novo. Quer cursar Mestrado e continuar trabalhando com a fotografia artística. Um dos próximos projetos a curto prazo promete uma abordagem sobre como viver a alegria depois da dor, fotografando pessoas que aram por momentos difíceis e hoje ajudam outras pessoas a ressignificar a dor da perda. O projeto já tem nome:“Do que é feita a primavera”. No caso da Sirli, as primaveras eram feitas com Mariana, Pedro e Cleberson. Agora são feitas com Mariana, Pedro, Francisco e Jandir, e com todas as lembranças do Cleber. Novas formas de recomeçar, enxergar o mundo de novo, e de seguir adiante mesmo diante da dor, em busca de mais primaveras.