O País festejou no dia 16 de julho o centenário de nascimento de Elizeth Cardoso, a “Divina”. Ela já era uma artista consagrada quando, em 1958, os caminhos da MPB confluíram para gestar a Bossa Nova, o movimento que abriu definitivamente as portas do mundo para a música brasileira. E não é que foi Elizeth quem, sem querer, ficou com a honra de ter inaugurado em show e disco esta avalanche artística peculiar, que usou elementos da música popular, do samba e do jazz para criar um ritmo que é sinônimo da alma nacional!

O que nem todos sabem é que uma florianopolitana da gema, Neide Mariarrosa, foi amiga da Divina, que a levou para o Rio de Janeiro convicta de que poderia transformá-la numa estrela de primeira grandeza no cenário musical brasileiro.
O álbum “Canção do amor demais”, de Elizeth Cardoso, com músicas de Vinícius de Moraes e Tom Jobim e tendo João Gilberto no violão em duas faixas, é considerado o atestado de nascimento da Bossa. “Chega de saudade”, de Gilberto, lançado em 78 rotações três meses depois do dito show (em julho de 58), decretou a gênese oficial da Bossa Nova, mas Elizeth, já com 30 discos de carreira (com sambas-canções, serestas e boleros), levou tantos louros quanto o violonista e cantor baiano.
É importante ressaltar que com a Bossa contribuiu o catarinense Luiz Henrique Rosa, que tocou no Rio e nos Estados Unidos próximo de bambas do quilate de Tom Jobim, Carlos Lyra e Luiz Bonfá.
De sua parte, Neide Mariarrosa ciceroneou Elizeth quando esta visitou Florianópolis para fazer shows no TAC (Teatro Álvaro de Carvalho) e no Lira Tênis Clube, em 1962. Recepcionou a cantora carioca no aeroporto da Capital e a recebeu em sua casa para um jantar com amigos. Depois, no Rio, foi a vez de a Divina apresentar Neide à nata do rádio, a diretores de televisão, a músicos, jornalistas e pessoas influentes.
A artista da Ilha, contudo, era muito apegada à família e à terra natal, e a história, após idas e vindas, terminou sem a esperada consagração desejada por Eliseth. Foi após ouvi-la cantando, no hotel onde estava hospedada e no TAC, que a Divina quis levar Neide para a Cidade Maravilhosa, onde poderia iniciar uma carreira profissional promissora.
A manezinha era fã e cantava o repertório de Elizeth em Floripa, de modo que apresentou o repertório bossanovista à cidade antes de qualquer outro artista. Elizeth se manteve no auge mesmo no pós-Bossa Nova, quando o país conheceu o tropicalismo, a jovem guarda e entrou na chamada “era dos festivais”, de 1964 a 1968 – onde Neide Mariarrosa se encaixou como uma luva.

De Fusca para o Rio, ao lado de Zininho 2e244e
No fim de 1962, no TAC, com o cerimonial de Antunes Severo e após esquetes de Waldir Brazil, Neide Mariarrosa cantou “E a vida continua”, de seu repertório. A pedido de Elizeth, também interpretou “As praias desertas”, sucesso da Divina, acompanhada pelo pianista Aldo Gonzaga. Na mesma noite ocorreu o show no Lira, e depois todos (incluindo o compositor Cláudio Alvim Barbosa, o Zininho) foram para a casa de Neide comer peixe – e cantar. Na manhã seguinte, sem dormir, o grupo abriu a rádio Diário da Manhã, onde cada um (Elizeth, Neide, Zininho) exibiu seus talentos vocais.
Na rádio, Elizeth Cardoso voltou a pedir que Neide fosse embora com ela. Não teve sucesso na primeira investida. Nas outras vezes em que esteve em Florianópolis, a carioca voltou à carga, mas só em 1967 o convite foi aceito. A transferência definitiva se deu a bordo de um Fusca dirigido por Zininho, onde também viajaram Leda e Marta, irmã e mãe de Neide. No Rio, ela esperava gravar um compacto com as faixas “Insônia”, de Zininho, e “O amor partiu (em paz)”, de Tito Madi, e ficou 20 dias hospedada na casa de Elizeth.
O disco não foi viabilizado naquela viagem, mas Neide voltou com um contrato assinado com a gravadora Odeon e com a TV Rio, onde se apresentara no programa de José Vasconcellos. “Em todos os lugares em que vai, a Divina afirma que Neide é a grande surpresa, a grande cantora, a grande estrela que irá surgir”, escreveu a mestranda Vívian de Camargo Coronato em dissertação concluída em 2010 na Udesc. “Ela abre portas para Neide na televisão, nos programas, nas gravadoras, nas casas de shows e nos jornais”.
O disco acabou sendo gravado e foi lançado em Florianópolis, após ter sido bem recebido no Rio. Aqui, a manezinha retomou seu trabalho na rádio Diário da Manhã e voltou a fazer shows em bares, clubes e residências, como convidada. “Neide não gostava de se ouvir, não achava sua voz bonita gravada em disco”, afirmou Vívian Coronato em seu trabalho. “Acho minha voz muito metálica”, disse Neide, por sua vez, numa entrevista dada em 1977 no Rio de Janeiro.
Estrela dos palcos e do rádio 3m105w
Neide Mariarrosa nasceu na rua Menino Deus, perto do Hospital de Caridade, em 1936, e estudou, como seus oito irmãos, no grupo escolar Dias Velho (prédio onde está hoje o Museu da Escola Catarinense). Sempre gostou de cantar e ouvia, com as irmãs, programas musicais das rádios Nacional e Tupy do Rio de Janeiro. Quando se mudou para a rua João Pinto, a família se tornou vizinha da rádio Guarujá, fundada em 1943, que tinha programas de calouros e de auditório e fez sucesso com as radionovelas, precursoras dos dramas que a televisão ainda exibe hoje em horário nobre.
Da sala de casa e das reuniões em residências de amigos, Neide ou a cantar no rádio, imitando Dalva de Oliveira, a artista mais popular da década de 1940. Recebeu prêmios como melhor cantora entre as emissoras locais e fez parte da orquestra do Clube 12 de Agosto. Depois, na Diário da Manhã, virou estrela como radioatriz e estourou no programa Bar da Noite, criado por Zininho especialmente para explorar o potencial vocal e seu talento. O nome da atração era uma referência à música “Bar da noite”, de Bidú Reis e Haroldo Barbosa, que fez sucesso nacional na voz de Nora Ney.

Era o tempo da fossa e do samba-canção, e Neide cantava ali, num ambiente que simulava o cenário de um bar, músicas de Maysa, Antônio Maria e, depois, Tom Jobim e os ícones da Bossa Nova. De Zininho, interpretava “Eu sou assim”, “Insônia” e “Num cantinho qualquer”. O bar não existia de fato, mas o locutor se referia aos frequentadores, ao garçom, aos drinques, como se o programa fosse feito num boteco de verdade. Lugar ideal para alguém cantar “O ébrio”, de Vicente Celestino, o suprassumo da dor de cotovelo…
Nas radionovelas, Neide chegou a interpretar quatro papéis ao mesmo tempo, porque a maioria dos radioatores trabalhava durante o dia e chegava depois do horário na emissora. Ela também participou de programas voltados para o público infantil e para as mulheres, como o “Revista feminina”, no qual dava conselhos sobre moda e beleza e transmitia músicas escolhidas. A versatilidade vocal e os atributos como radioatriz sempre abriram muitas portas para ela.
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Quando inscreveu seu “Rancho de amor à Ilha” num concurso da prefeitura, em 1965, Zininho chamou Neide Mariorrosa para fazer a interpretação. A canção defenestrou as demais concorrentes e, três anos depois, se tornou o hino de Florianópolis. Foi mais um fruto da parceria entre os dois artistas. Num dos últimos shows de sua carreira, em 10 de dezembro de 1993, no Teatro do CIC, ela fechou o programa interpretando o “Rancho” com a plateia.
Em sua trajetória, enfrentou pelo menos dois tipos de preconceito: os de ser negra e mulher. O primeiro era muito ostensivo em Florianópolis, a ponto de negros e brancos ocuparem lugares opostos na praça 15 de Novembro após as sessões de cinema. E o segundo porque mulher de família não trabalhava, e muito menos no rádio. Ainda assim, Neide tocou nos principais clubes da cidade – Lira e 12 de Agosto – e ganhou o status de cantora “society” dos colunistas de jornal.
Apesar de ser tímida e não saber sambar, Neide foi um das raras mulheres a atuarem como intérpretes (puxadoras) em desfiles de escola na avenida (na Protegidos da Princesa), foi homenageada como personagem do Berbigão do Boca, foi bem-sucedida em festivais de música, criou dois restaurantes em Florianópolis (onde abria espaços para músicos locais), se tornou tema de enredo da escola Consulado do Samba (em 2004), inspirou TCCs e documentários e deixou o LP “Eu sou assim”, o único da carreira, com letras de Zininho, Mirandinha, Aníbal Nunes Pires e Osvaldo Ferreira de Melo, entre outros.
itiu que sua decisão de permanecer em Santa Catarina, abrido mão de uma carreira na metrópole, resultou de um traço de sua personalidade. “Talvez isso se deva à minha formação essencialmente provinciana, embora meu espírito seja – para a província – muito liberal”, disse, em entrevista. Neide morreu de câncer, em 1994. Parte do que deixou está no acervo da Casa da Memória, em Florianópolis.