“A freguesia da Conceição da Lagoa, que fica a lés-nordeste da capital à margem ocidental da Lagoa Grande é denominada pelo morro do Padre Doutor (450 metros) de onde se descortina um dos mais belos panoramas que olhos humanos podem apreciar, panorama que atrai vivamente a atenção dos viajantes, nacionais ou estrangeiros, que am ou se demoram em Florianópolis, constituindo também o encanto de seus habitantes, que, aos domingos e dias feriados, fazem da formosa localidade um dos pontos de suas excursões”.
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Esse trecho da memória de nossa Lagoa da Conceição, escrita por Virgílio Várzea em 1900 (in Santa Catarina: A Ilha), é talvez uma das referências mais belas e vivas sobre um lugar que ainda expressa magia e encanto, mesmo que tenha sido sistematicamente agredido pela especulação durante décadas.
Uma das freguesias mais antigas de Florianópolis, fundada no século 18, a Lagoa atual pouco lembra suas origens, exceto pela Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, construída em 1780 e tombada em 1975 como patrimônio histórico e cultural do município, por meio de decreto do então prefeito Esperidião Amin. No mesmo decreto, Amin tombou as igrejas de São Francisco da Penitência e Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (Centro), Nossa Senhora das Necessidades (Santo Antônio de Lisboa) e Nossa Senhora da Lapa (Ribeirão da Ilha).
Várzea assinala em seu livro que o povoado da Lagoa – então “com 3.450 almas, das mais laboriosas que conhecemos” – surgiu em torno do templo católico, hoje também conhecido como Igrejinha da Lagoa. Diz o autor: “Acham-se alinhadas em volta (da igreja) as principais casas do povoado, algumas envidraçadas e assobradadas, todas em geral caiadas e de um só pavimento, vastas e bem edificadas como obras antigas, que são, e onde habitam os mais abastados agricultores do lugar”. A agricultura, antes da pesca, foi a principal fonte de subsistência dos imigrantes açorianos que para cá vieram entre 1748 e 1756. A chamada pesca artesanal é um fenômeno que surgiu e se consolidou ao longo do tempo, como forma complementar de sobrevivência, mas que acabou se tornando uma importante fonte de renda complementar para os moradores. Várzea trata do assunto em sua obra, deixando evidente que os pescados tinham um problema básico: a conservação. Naquele tempo não havia geladeiras e só existiam duas indústrias que beneficiavam os produtos do mar em Santa Catarina.
o asfaltado deu força à urbanização
ar a Lagoa da Conceição foi, durante mais de um século, um problema tanto para os moradores quanto para os visitantes. Em 1900 Várzea já faz referência aos “touristes” (assim mesmo, em francês), que só tinham o ao alto do Morro das Sete Voltas por meio da estrada de barro ou de trilhas. Ele cita as cavalgatas (cavalgadas) como forma de chegar ao local para se apreciar o nascer do sol. Até meados da década de 1940 as crianças da comunidade tinham que caminhar mais de oito quilômetros até a Agronômica, para estudar.
A dificuldade de o garantiu um relativo isolamento para os moradores e certamente contribuiu para a preservação da natureza pelo menos até a década de 1970, quando a atual estrada foi implantada. O asfalto foi determinante para incrementar a atividade turística em toda a Ilha de Santa Catarina. As estradas modernas foram executadas no governo de Colombo Machado Salles (1971-1975) com esse propósito, de início – antes que chegassem os gaúchos, paulistas e argentinos – para estimular o turismo interno.
A fama da Lagoa da Conceição correu mundo. Os estrangeiros e brasileiros de outros Estados que vinham, nos anos 1970 e 1980, chegavam ávidos por conhecer as dunas e os “restaurantes da Lagoa”, famosos por servir pescados fresquinhos e pela célebre “sequência de camarão”. Qualquer documentário sobre Florianópolis, como os produzidos pelo governo do Estado ou pela Agência Nacional (hoje EBC) incluía a Lagoa e seus restaurantes no enredo. A Lagoa foi nossa primeira rota gastronômica, parte de qualquer roteiro turístico que merecesse esse nome.

Uma referência turística fundamental
Se não for muito, mais um trechinho do livro de Virgílio Várzea: “E à proporção que o sol galga a altura, paisagem e marinha em redor, perdendo a feeria dos primeiros tons, tumultuando no contraste vivo das sombras que morrem de chofre por entre as ramagens e topos — ganham a acentuação e firmeza de seus exatos contornos e doces, soberbas nuances. Vê-se então, sob a igualdade serena da luz, na sua majestade e grandeza, esse recanto de terras e águas que é dos mais belos do mundo”.
O paraíso descrito pelo autor não durou muito tempo. Cerca de 70 a 80 anos depois que ele escreveu “Santa Catarina: A Ilha”, a Lagoa foi objeto do processo especulativo que tomou conta da Ilha de Santa Catarina. Tornou-se referência de moradia para gente de todas as partes por causa também da proximidade com o Centro. Os preços dos imóveis inflaram, muitos construíram seus prédios e casas de qualquer jeito, sem o mínimo cuidado com o urbanismo e o meio ambiente, a poluição invadiu suas águas.
Não soubemos cuidar da Lagoa. Ou, quando amos a cuidar, a nos preocupar, já estava um pouco tarde demais. A fúria da ocupação já tinha feito a sua parte.
Desafio para os governantes e moradores
A rota gastronômica está preservada e ampliada, os bares e cafés são charmosos e convidam ao bate-papo e à confraternização. A Lagoa continua sendo uma referência turística fundamental, suas dunas ainda encantam multidões de excursionistas, suas águas são usadas para a prática de esportes náuticos. Mas a Lagoa ainda é um desafio para os governantes e para os moradores mais conscientes, no sentido de ser recuperada ambientalmente e conservada como referência histórica fundamental da imigração luso-açoriana. O prefeito que assumirá a istração da cidade em 1 de janeiro de 2017 não poderá perder esse foco.
“Cristal onde a lua vaidosa vem se espelhar”
Sempre bom lembrar: a Lagoa está imortalizada nos versos do Rancho do Amor à Ilha, composto por Zininho (Cláudio Alvim Barbosa) e transformado no nosso hino oficial de Florianópolis:
“Tua Lagoa formosa,
ternura de rosa
poema ao luar
cristal onde a lua vaidosa
sestrosa, dengosa,
vem se espelhar”.