Sábado para divertir as mandíbulas, recrear o paladar. Se já não aconteceu no sábado, o domingo também se presta para uma boa feijoada – esse opíparo pretexto para que o homem se empanzine, sem itir que acaba de cometer todos os pecados da gula. Feijoada é liturgia.

O cheirinho do feijão subindo ão acima, as carnes assando dentro daquele viscoso “petróleo”, o caldinho servindo de aperitivo, como se fosse o nutritivo leitinho da mamãe.
A caipirinha vai rolando – e enrolando as línguas. Mas vai também elevando os espíritos e preparando o organismo para a grande orgia: lombo, carne seca, linguiças, paio e pirão – o primeiro diácono dessa “missa” concelebrada.
Esse feijão que hoje chamamos de “amigo” nasceu na noite da escravidão, como “resto” de comida dos sinhôzinhos, migalhas deixadas para os negros das senzalas.Hoje é um luxo. Só as “guarnições” já dariam para outro almoço: arroz, farinha, refogado de cebola, fatias de laranja, couve cortadinha e – para alguns exagerados – bacon frito.
Lembro-me de uma histórica feijoada em um sábado londrino, tupiniquins recepcionando ingleses ainda “virgens” nos segredos dessa especiaria brasileira. Todos os insumos do apreciado prato nacional haviam desembarcado na esquisita ilha do Norte, certamente por um descuido da alfândega.
Escondiam-se na mala de um estudante baiano, falante de um inglês com sotaque de “soteropolitano”, o cidadão de Salvador.Pura sorte. A Vigilância Sanitária do Aeroporto de Heathrow costuma ser implacável com a importação de alimentos. Carnes, então, nem pensar. Pois o baiano não só baldeou “morcilhas” e “pés-de-porco”, como toda a sortida coleção de embutidos capaz de “caber” no armário de uma feijoada. Tinha até farinha de mandioca de Santa Catarina.
Para ser mais preciso, de Araranguá.E se o padre João Alfredo Rhor – uma espécie de Indiana Jones dos jesuítas do Colégio Catarinense – aparecesse de surpresa para aqueles comilões, os restos daquela feijoada bem que se prestariam à sua pá exploradora de sambaquis…
O velho feijãozinho amigo vai acabar como um prato raro (e caro) da nouvelle-cuisine e servido por um Chef de Lyon, encadernado num impecável uniforme de linho, os pratos “decorados” com dois bagos de feijão e uma coroa de louros…
Certa vez, em tempos mais generosos, um súdito de Sua Majestade britânica foi apresentado à nossa preferência nacional e me perguntou, desconfiado, quais eram os ingredientes de uma feijoada.
Caprichei, e fui enumerando:– Alguns quilos de feijão, preto ou mulatinho, lombinho de porco, carne seca, toucinho, linguiças, pés de porco, orelha, rabo, cebola, alho, louro – tudo acompanhado por arroz branco, fatias de laranja, couve cortadinha e refogada, farofa, bananas assadas no próprio caldo…– My God! – interrompeu o galego, escandalizado – isso não é um prato de comida: é um matadouro ou um supermercado!