Houve um tempo em que se dizia, em tom de brincadeira, que “o melhor hospital de Florianópolis é o aeroporto”. De fato, até quatro ou cinco décadas atrás, dependendo da necessidade do paciente, a saída mais recomendada era buscar tratamento em capitais como São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.
Em diferentes especialidades, a estrutura e a disponibilidade de equipamentos modernos de diagnóstico estavam aquém do que era oferecido em outros Estados. Essa situação mudou a ponto de hoje a Capital ser referência em muitas especialidades e atrair pessoas de fora que precisam de exames complexos e buscam a cura de suas doenças.

Profissional com 60 anos de experiência e grande prestígio no meio, o médico Murillo Ronald Capella acompanhou essa transformação e tem na memória, com incrível precisão, as datas que marcaram as mudanças de rumo na medicina da Capital.
“O primeiro grande marco foi a criação da Faculdade de Medicina”, conta ele. Até o final da década de 1950, as faculdades existentes na cidade eram isoladas, o que acabou após o surgimento da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em 1960. Inicialmente, a instituição oferecia formação nas áreas de clínica médica, clínica cirúrgica, pediatria e ginecologia e obstetrícia.
Com a universidade, vieram de outras capitais médicos com experiência que, como professores, transmitiram seus conhecimentos às primeiras turmas de alunos em Florianópolis. O Hospital de Caridade, instituição com mais de 230 anos de história, foi o local que serviu de base para o ensino, à época, viabilizando o curso de Medicina da UFSC. A pesquisa, equipamentos e novos materiais foram agregados à rotina do diagnóstico e do tratamento de doenças na cidade.

Um pouco antes, o governador Irineu Bornhausen havia construído a maternidade Carmela Dutra, e depois seu sucessor, Celso Ramos, criou uma estrutura que ainda hoje faz de Florianópolis o grande polo de saúde no Estado, com destaque para o hospital que leva o seu nome (hospital Governador Celso Ramos) e o hospital infantil Edith Gama Ramos, inaugurado em 1964 e substituído, em 1979, pelo hospital infantil Joana de Gusmão. Com o HU (Hospital Universitário), de 1980, fechou-se um dos grandes ciclos de investimentos públicos em infraestrutura hospitalar na Capital.
No governo de Antônio Carlos Konder Reis (1975-1979), foram criados o hospital Marieta Konder Bornhausen (em Itajaí) e os hospitais regionais de São José, ville e Chapecó. De 1955 a 2007, funcionou o sistema de convênios, pelo qual os hospitais públicos atendiam também a área privada e tinham uma receita que lhes permitia investir em materiais, insumos e equipamentos e manter médicos com dedicação exclusiva.
Os hospitais privados e a mudança de cenário w4q6n
Depois que os hospitais públicos aram a atender apenas os pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde), e com a transferência dos estabelecimentos vinculados às fundações hospitalares para as secretarias estaduais de Saúde, muitos médicos foram atrás de parceiros ou se tornaram empresários, abrindo hospitais privados que atendiam a um público com maior poder aquisitivo e que investiram em equipamentos modernos de exames por imagens (ultrassonografia e ressonância magnética, por exemplo).
Eles também aram a ser uma nova opção para a residência médica, porque houve no Estado uma multiplicação de cursos de Medicina, a partir de 1989.

Foi quando surgiram o SOS Cárdio, o hospital Baía Sul, o hospital da Unimed, o Santa Helena e o Ciência (este, em Palhoça), para citar os principais. “Graças a esses hospitais não houve a falência da assistência médica pública”, diz Murillo Capella.
“Hoje, para qualquer tratamento, só se sai de Santa Catarina em ocasiões muitos raras. Temos médicos de ponta nas áreas da cirurgia cardíaca, de fígado e rim. Esses estabelecimentos atendem 24 horas por dia e são donos dos equipamentos mais completos de diagnóstico. Somos um polo de excelência que atrai muitos pacientes de outros Estados”.
A visita de Albert Sabin, um marco para a saúde 2jc1k
Um dos grandes marcos para Santa Catarina foi a vinda, em 1980, de Albert Sabin (1906-1993), médico americano de origem polonesa que criou a vacina contra a poliomielite. Havia um surto da doença no Estado, especialmente na região de ville, e Sabin (que era casado com uma brasileira) estava em São Paulo em janeiro daquele ano.
O governador Jorge Konder Bornhausen conseguiu trazer o médico para Florianópolis, e sua agem provocou uma guinada que resultou na erradicação da chamada paralisia infantil não só no Estado, mas no país. Hoje, a via que dá o ao hospital infantil Joana de Gusmão exibe um busto em sua homenagem.
“Ele visitou o Hospital Nereu Ramos, onde havia crianças com meningite, sarampo e difteria”, conta Capella. “Na área de infectologia do Hospital Infantil, dirigido por mim, ele sugeriu que colocássemos no mesmo prédio as crianças dali (que sofriam de doenças que causavam pus) e as do outro hospital (que tratava de pacientes com doenças provocadas por vírus). E também propôs a vacinação em massa como única saída para evitar que uma epidemia se alastrasse por todo o Estado”.
As autoridades da saúde criaram um plano que foi orientado e conduzido por Albert Sabin, acompanhado pelo médico sanitarista Manoel Américo de Barros Filho, que foi secretário da Saúde do município e do Estado. “O surto foi dominado e Santa Catarina se tornou o primeiro Estado a erradicar totalmente a poliomielite”, diz Capella.
O equilíbrio entre o humano e a tecnologia 281r6a
Com a experiência de quem viu a insuficiência cardíaca ser tratada com diuréticos, dieta sem sal e descanso, o dr. Murillo Capella diz que a tecnologia veio para ficar e continuará sendo uma grande parceira dos médicos. Os transplantes de coração, um procedimento que teve origem nos anos de 1950, começaram a mudar o destino de muitos doentes, e hoje os stents estão aí para dar décadas de sobrevida a pacientes antes condenados a morrer de uma hora para outra. A cirurgia robótica é outra frente importante e vai se popularizar quando os custos forem reduzidos.

Com tudo isso, mais o que a Inteligência Artificial vier a oferecer daqui para frente, o médico tem o cuidado de pregar a parcimônia no uso da tecnologia – não pelo que ela pode proporcionar, mas pelo risco do apego excessivo à técnica, em detrimento da conversa e da troca com os pacientes. “Tem que haver equilíbrio entre o humano e a tecnologia”, afirma.
Ex-secretário da saúde de Florianópolis e do Estado, autor de 12 livros e ainda ativo, aos 86 anos, Capella é um defensor do SUS e das vacinas e diz que “não há governo que consiga ar sozinho as demandas na área da saúde”. Mesmo com a saúde suplementar, há 150 milhões de brasileiros que dependem da assistência do Estado para se tratar. Ele advoga as parcerias público-privadas também nesta área, enquanto os governos tratam de manter e apoiar os hospitais comunitários, fundacionais e filantrópicos.