A Universidade Federal de Santa Catarina era recente quando os generais romperam com o regime democrático, encerraram o governo eleito de João Goulart, e implantaram a ditadura militar de 1964. E ainda no dia 31 de março, às vésperas do golpe que se confirmou em 1º de abril, o prédio da União Catarinense dos Estudantes, na Álvaro de Carvalho, foi revirado e o Restaurante Universitário invadido. A UFSC estava definitivamente na mira dos agentes do serviço secreto. Até os últimos dias da ditadura, a universidade foi palco de perseguições, prisões e espionagem. Nos anos 1970, o funcionamento do correspondente do SNI (Serviço Nacional de Inteligência) em sala do lado do gabinete da Reitoria é só um dos indícios do alinhamento da istração universitária com o novo regime da época.
Parte desta história está no Relatório Final da Comissão de Memória e Verdade DA UFSC, divulgado nesta segunda-feira (14), no hall da Reitoria. O documento, com mais de 800 páginas, é fruto de incessante trabalho que envolveu estudantes, servidores e professores da universidade. Boa parte do material foi colhido diretamente em fontes primárias, como documentos da UFSC, Arquivo Nacional e registros do Dops (Delegacia de Ordem Política e Social). Também foram colhidos 21 depoimentos individuais e realizadas 03 audiências públicas nas quais houve a participação total de 13 depoentes.
O presidente da comissão, professor Jean-Marie Farines, diz que vários estudantes, professores e servidores da UFSC foram vítimas das mais diversas violações de direitos humanos e que demissões, nãocontratações e perseguições internas políticas e às vezes pessoais foram comuns nesse período.
Ele lembra ainda, que tantos outros casos acabaram não concluídos, ou tiveram seus relatos comprometidos, como o caso de uma das demissões deliberadas em que o processo contra o docente teve a última página arrancada. “Acho que o maior achado deste relatório foi mostrar que houve a colaboração de pessoas de dentro da universidade. Isso nos mostra que as coisas nem sempre foram um mar de rosas”, explica.
O documento, elaborado ao longo de dois anos, aponta que “ficou comprovado que o papel de espionagem, denúncia, censura, repressão e controle ideológico foi assumido em determinadas períodos pela própria istração da UFSC”.
Jornalista elaborou dossiê sobre período 2i5x4i
Entre as diversas contribuições dadas à Comissão da Memória e Verdade da UFSC se destaca o trabalho do jornalista Mateus Bandeira Vargas, que na conclusão da sua graduação apresentou o “Dossiê UFSC: As ações da ditadura na Universidade Federal de Santa Catarina”.
A pesquisa de Vargas começou a ser elaborado antes mesmo da criação da Comissão da Memória, e após sua criação, em 2014, o estudante ou a colaborar com seus achados. O resultado foi defendido no primeiro semestre de 2016, onde casos envolvendo estudantes, reitores e generais são detalhados em 187 páginas.
O Dossiê UFSC, que teve parte integrada ao relatório da Comissão de Memória, relata episódios como a instalação efetiva do AI-1 na universidade, após abertura de investigação nos centros e a cassação dos membros do FEUSC, atual DCE (Diretório Central dos Estudantes).
“A investigação contra a FEUSC foi mero ensaio para a caça às bruxas que se instalaria na universidade. Nas semanas seguintes, dezenas de funcionários e estudantes, do baixo clero ao próprio reitor Ferreira Lima, seriam investigados por um grupo de professores escolhidos a dedo pelos militares”, aponta trecho da investigação realizada por Mateus Vargas.
Estudantes presos para encontro de marechal com o reitor Ferreira Lima 6q6f3u
Outro caso envolvendo estudantes se deu na visita do marechal-presidente Costa e Silva, em dezembro de 1968, à universidade. A visita do marechal redeu as prisões de Sérgio Bonzon, Rômulo Azevedo, Roberto Cascaes, Paulo Joaquim Alves, Ademar Dias, Walter Vieiras e Derlei de Luca.

“Sérgio Bonzon comia um cachorro quente acompanhado de uma cervejinha no Roda-Bar. Foi preso por comissários da DOPS. Rômulo Azevedo, Roberto Cascaes, Paulo Joaquim Alves, Ademar Dias e Walter Vieiras iam para o Estreito num Volks; cinco comissários saltaram de uma Rural e, depois de interceptar o Volks, prendeu os rapazes; Heitor Bittencourt Filho saía de sua casa quando foi detido. A estudante de Filosofia Dirley de Luca deixava a sua residência quando recebeu voz de prisão. (…) Ficaram incomunicáveis na cadeia de Biguaçu, ali ando a noite, sem alimentação. Às 16 horas, quando o presidente Costa e Silva já deixara Florianópolis, foram postos em liberdade. Ainda bem que a nação vai bem”, escreveu o jornalista Adolfo Ziguelli, na edição de 8 de dezembro de O Estado,
Derlei Catarina De Luca foi uma das principais fontes de informação e memória sobre o movimento estudantil contra a ditadura em Santa Catarina. Presa entre novembro de 1969 até março ou começo de abril de 1970, segundo relatou ao ND, em reportagem publicada sobre os 50 anos do golpe. “Eles não podiam me soltar porque eu estava muito machucada”, disse na época.
Ex-reitor Cancellier foi perseguido pela repressão 4tu4z
A agem de Luiz Carlos Prestes nas comemorações do centenário da morte de Karl Marx, claro, não aria em branco pelo serviço de inteligência do regime. Foi nesta oportunidade que novos alvos da militância estudantil foram registrados.
Entre os nomes destacados pelos militares sobre fotos da época, Cancellier é citado ao lado de outros nomes conhecidos da época, como o do cartunista Sérgio Bonzon, do extinto jornal O Estado, Roberto João Motta, advogado e professor da UFSC, preso em 1975 pela Operação Barriga Verde, e Denise Jakimiu, na época estudante de Medicina.

O Relatório da Comissão da Memória e Verdade será encaminhado à Comissão Nacional e ao MPF (Ministério Público Federal) para possíveis investigações posteriores e eventuais punições.
O documento ainda elenca uma série de recomendações para a UFSC, como a construção de memoriais às vítimas, reavaliação de homenagens a pessoas que, reconhecidamente, feriram ou ajudaram a ferir os Direitos Humanos durante a ditadura civil-militar e a reabertura pela istração da universidade de casos e histórias revelados para que a verdade dos fatos seja oficialmente reconhecida.
O presidente da comissão, Jean-Marie Farines, lembra que alguns dos fatos relatados no documento datam mais de 50 anos, mas que o mais importante do relatório é trazer os casos à tona, como forma pública de se reconhecer os inúmeros casos abusos e violações aos direitos humanos no período da ditadura.